29 junho, 2013

AFINAL, QUE ESTRADA?




 
Colorado

AFINAL, QUE ESTRADA?
Por Luigi Ricciardi

            Conheci On the Road não muito depois de um dos meus sonhos morrer. Eu havia saído de um relacionamento conturbado do qual não vale a pena nem falar. Nessa época eu estava tentando matar o meu pai, mentalmente é claro, que é, ao menos dizem, a maneira da gente ser homem de verdade e seguir a vida. Um dia, durante uma aula, os alunos estavam dizendo qual era o livro preferido de cada um, e me deparei com esse livro, título em inglês, pedante, insistindo em manter o título original, embora já houvesse uma tradução em português. Com a chegada desse livro se intensifica o que se chama de minhas férias na estrada.
            Sim, férias, e não a vida toda. Não tenho culhões para ser uma espécie de santo beat tal Jack Kerouac. Minha geração é medrosa, está longe de ser aquela dos anos 1950, que também vivia no marasmo, mas sabia viver. Eu até tinha botado a mochila nas costas e ido me aventurar em Florianópolis, Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro, e foi logo depois do fim de outro momento na minha vida, mas ainda assim não tinha sido verdadeiramente uma aventura.
            Na Europa não vi estrada, não da maneira como se vê contemporaneamente. Voei, e não realizei essa coisa de fetiche, ver essa linha branca e pura que corta o asfalto, não vi uma francesinha de olhos claros com quem eu gostaria de me casar e passar a vida colhendo lavandas. Não peguei carona com o povo frio francês, não tive a chance de chamar uma bela sulista para um café e um Crème Brulée

Trilho do bonde em São Francisco

            Quis ver o charme e o fetiche estadunidense de perto. Estradas românticas, tipo vídeo clipe. É, a gente vai criando sonhos bobos, mas é o que resta a uma geração celular, bem mais perdida que aquela geração Coca Cola já cantada antes. Resolvi ir sozinho de Boston a São Francisco, ida e volta, quase doze mil quilômetros, para ver se eu encontrava alguma das imagens vistas no livro. Juntei-me ao grupo de mais de cinqüenta mil pessoas que já tentaram fazer, senão todo o trajeto, ao menos parte dele para tentar encontrar o mesmo. Quem sabe ficar por lá, ver uma garota, tomar cerveja com o irmão dela, e dar um pico pra alegrar. Essa seria a vida ideal. Hoje estou por entre árvores de uma cidade hipócrita. Porque os sonhos se desfalecem tão facilmente? Porque a elevação é tão efêmera?
            Queria ir de carro, mas meu primo que mora no Cape Cod estava trabalhando em Nantucket e não podia ir. Ouvi dizer que pegar carona agora era proibido e que as pessoas tinham medo de levar multa por isso. Resolvi então ir de Greyhound, comprei uma passagem na internet por uma bagatela de trezentos dólares. Nas primeiras quatro horas, eu já começara a reler On the Road. Sentei-me ao lado de um esquiador, o cara parecia bacana, eu queria conversar, mas ele não deu espaço. Eu queria mesmo era falar com todo mundo, conhecer algo novo, falaria até com a brasileirinha nariguda com cara de evangélica que estava sentada no terceiro banco. Eu estava tão contente que se ela quisesse orar por mim eu aceitaria. Tudo era válido. Tinha uma negra muito bonita no outro banco, de um negrume diferente da morena brasileira. E fiquei vendo essa paisagem crepuscular até chegar à Nova Iorque.
            Logo na troca de ônibus, tomei uma bronca do motorista que me gritava “ID” para mostrar alguma identificação e eu não entendia o inglês dele, aliás, eu não entendia praticamente inglês nenhum, e fiquei sorrindo, balançando a cabeça, cumprimentando-o várias vezes com cara de otário. Ele praticamente me bateu, apontou para o papel e disse para mostrar uma foto, aí entendi. Entrei no ônibus e comecei a ter a primeira decepção.
            Eu estava entre os nigers, que falam sem parar, pareciam brigar, perto deles um grupo de italianos discutindo pareceria estar recitando poemas. Nenhum deles me dirigiu a palavra, ainda bem, eu estava com medo, mais das mulheres do que dos caras, elas cuspiam pra falar e mostravam seus vãos entre os dentes. Aí um cara começou a ouvir hip hop.
Que belo início de viagem para alguém que queria chegar Nova York, encontrar qualquer merda de trabalho na rua pra pegar a primeira carona em direção a São Francisco, para fazer uma on the road, e parar por motéis baratos pelo caminho, bebendo cerveja long neck e sonhando em caçar fantasmas e transar com garotas loucas dentro do Impala em movimento. Nesse sonho, eu chegaria em São Francisco e trabalharia como ajudante da City Lights e nas horas vagas eu trocaria umas palavras com o meu chefe Lawrence Ferlinghetti e ele me contaria as loucuras quando aquela trupe de beatniks aparecia na porta dele e da ideia que ele teve pra escrever o seu célebre Um Parque de Diversões na cabeça. Nada disso aconteceu, é claro. Eu estava triste. 

Viela Jack Kerouac ao lado da livraria City Lights
Na Filadélfia a coisa estava pior, eu não entendia uma palavra sequer do que as pessoas diziam, e captava algumas palavras soltas no discurso que o motorista fazia no microfone dentro do ônibus ao sair da rodoviária. Uma garota mexicana trocou umas duas palavras comigo, pediu para sentar ao meu lado, no lugar de um maluco desastrado que já havia derrubado suco no asteca que estava sentado à frente. Eles trocaram de lugar, a menina sentou ao meu lado e começou a falar em uma língua situada entre o inglês, o espanhol e o maia que ela precisava de dinheiro e que faria qualquer coisa para conseguir. Eu já estava louco por sexo, mas resolvi esperar. De repente, outro sujeito veio sentar no lugar dela, ela foi para outro banco, atrás do sujeito desastrado e tentou roubar sua carteira. Acabei entendendo o que significava esse “fazer tudo para conseguir”.
Passamos por Pittsburgh, Columbus, Indianápolis (sim, eu tentei ver um carro de corrida, mas não vi) e Saint Louis, onde uma motorista muito simpática fazia piadas, conversava a viagem toda falando de como e porque ela havia escolhido tal profissão, e que dava tapinha nas costas de todos e chamava todo mundo de honey. Ela ainda dava um belo caldo no auge dos seus quarenta e tantos. A essa altura tudo o que se mexia e tinha um buraco me chamaria a atenção.
Eu já estava bem amigo do senhor desastrado. A cada parada tentávamos conversar. Ele era um engenheiro solteirão de Trinidad e Tobago que resolvera fazer mochilões todos os anos. Eu já havia melhorado a minha compreensão no inglês, mas o sotaque dele era desastroso e minha comunicação pior ainda. Mas ficamos amigos mesmo assim. Era um sujeito simpático, tentava me explicar as máquinas que ele construía, falando da filha única que teve sem casar, que preferia a vida assim, e de como ele gostava da sua ilha caribenha.
Passamos por muitas cidades no centro do país. Em Lawrence achei que fosse ver os Winchesters. Na maioria das rodoviárias, muitas delas citadas no livro de Kerouac, eu esperava ver alguém com as mesmas características, uma alma penada ou algo do tipo, que me pediria um dólar para poder tomar um café quente na noite fria de quinze graus negativos. Não vi ninguém.
De longe, vi um bar todo de madeira que parecia ter saído dos anos 1920 direto para o século XXI, onde um negro tocava um violão velho e o outro tocava gaita. Era aquilo que eu procurava. Mas paramos bem à frente, em uma lanchonete moderna com garçonetes com uma educação engessada e gente apressada para dar uma cagada no banheiro, pois o ônibus balançava muito. De modo que não vi o blues de beira de estada.
Em algum lugar entre Saint Louis e Kansas City, um maluco entrou no ônibus, disse que estava pegando carona desde Miami e estava indo para “élei”, que era uma maneira muito maneira de dizer Los Angeles. Ele vinha da Austrália, onde tinha pegado várias ondas. Ele carregava sua prancha surrada e tinha um olhar de louco que arde. Pensei, esse cara é o tipo de gente que procuro. Tentei conversar com ele, mas meu inglês sustentou a conversa durante os dez primeiros minutos, e, na meia hora seguinte enquanto esperávamos o ônibus que estava atrasado, eu só balançava a cabeça concordando entre um yes e outro.
 
Nevasca entre Reno e Sacramento
Chegamos a Denver, a maravilhosa Denver que teve o privilégio de ter Kerouac, Cassady e Ginsberg perambulando pela cidade à noite, e velhos vagabundos mendigando perto das linhas de trem. Mas, em Denver eu só vi neve, e todo mundo dizia chavões. Entramos no desértico Wyoming, parando entre uma lanchonete e outra no meio das montanhas e da neve. Um vento de tristeza me congelou entre os vilarejos. Senti saudade da minha gente. E de um corpo quente.
Foi quando entrou uma linda garota, jovem, roupa de militar. Foi saudada pelo motorista fanfarrão como se ela fosse a salvação do país. Ela estava indo para uma base na costa oeste, mas não me lembro o nome da cidade. Eu estava sozinho no banco duplo, e, logo após o apertado corredor, ela também estava sozinha. Ela se esticou, ocupou os dois bancos, com as costas na lateral do ônibus. Começou a ler, e disfarçadamente no início, e não tão disfarçadamente depois, começou a me olhar.
Fiquei meio recesso de ficar com uma militar, mas seu beijo era quente. Ela me contou um pouco sua história, família de militares, precisava seguir a carreira da família meio a contragosto. Ela me chamou de macaquinho branco, e disse que queria ter um romance comigo. Só não gostava da minha barba, disse que eu tinha cara de comunista. Combinamos um encontro em Boston para dali uma semana, mas sabíamos que isso não aconteceria. Ela iria para a guerra física, e eu para a psicológica. Eu não podia ficar ali, eu ainda tinha alguns livros para escrever.
E o surfista reapareceu em Salt Lake City, enquanto a militar dormia encostada em mim. Começou a falar alto, sozinho, dizendo que não se arrependia de ter transado com uma guria de nove anos. Quis sentar a cada segundo em todos os bancos do ônibus, dava socos no ar brigando com alguém. O motorista pediu pra todo mundo ficar sentado, pois as estradas nas montanhas eram perigosas, e o surfista acabou sentando no colo da mulher de um mexicano, daqueles mariachis com chapéus enormes. A briga começou com o ônibus deslizando na pista cheia de gelo. Foi a minha pequena, muito mais macha que eu, que acabou com toda aquela história ameaçando o louco de prisão.
Cheguei a Sanfran quatro horas depois do previsto, meu amigo já me esperava na rodoviária há muito tempo. Antes disso, ficamos horas presos em uma nevasca no alto das montanhas da Califórnia, entre uma gritaria de duas famílias enormes de negros que estavam empolgados para chegar logo em Sacramento. Os caras eram simpáticos, as garotas gordas e bonitas, e eu já entendia o que eles falavam. Fiquei só de ouvidos na conversa toda. Fomos guinchados e deslizávamos entre despenhadeiros. Minha pequena tinha ficado em Reno.
Foi bom tomar um banho depois de tantos dias, e ver alguns rostos conhecidos. Durante os quatro dias que fiquei na cidade da contra cultura, fiz estilo turista alegre, tirando fotos, visitando pontos turísticos. Revi um grande amigo e sua esposa, falamos da vida, dos destinos que se cruzam e se entrecortam, e da beleza do futuro inesperado. Fui tentar ver o Ferlinghetti na City Lights e fiquei olhando pela janela embaçada do Café Vesúvio para ver se encontrava a mesa onde Kerouac tomava seus porres. Vi a belíssima ponte, andei de metrô, subi as ruas extremamente íngremes de Berkeley e fui ao Píer 39, onde vi vendedores de ostras que cantavam estilo havaiano. O museu beat estava fechado.
Conheci duas italianas malucas que tinham morado no Brasil e falavam um pouco de português. Elas eram amigas de um cara do Mali, com quem finalmente consegui conversar em francês. Fumamos um, mas elas queriam fazer um jogo estranho, queriam me beijar, só que antes eu teria que fazer alguma coisa com o amigo delas, mas eu não havia entendido direito. É claro que não fiquei pra ver, e fui dar uma volta na fétida Chinatown.  Resolvi depois ir andar de bondinho a uma bagatela de seis dólares a viagem. Fiz amizade com o condutor, um chinês convertido ao catolicismo que havia visitado Portugal. Quando descobriu que no Brasil se falava português e que havia uma santa negra por aqui ele ficou encantado e disse que eu não precisava pagar a viagem de volta.
Na rodoviária conheci duas mineiras e um baiano que também estavam em um mochilão, e já haviam passado por Maringá. Elogiaram a cidade, ao que eu respondi: vocês estão muito enganados. Dormi na rodoviária, abraçado à mochila, pois meu ônibus tinha sido cancelado por conta da nevasca. 
Deserto do Novo México

Frisco era linda, mas extremamente triste. A chuva fina e fria que cortou minha passagem por lá me dizia que mesmo na Califórnia o mundo tinha mudado. Tomei chuva para engolir um hambúrguer, e me sequei com a calefação da rodoviária. Dormi de novo no chão da estação, pois eu já não tinha mais dinheiro para hotel, nem sabia voltar para a casa do meu amigo. No dia seguinte, enfim, meu ônibus saiu.
Passei por Los Angeles e não consegui ver o famoso letreiro de Hollywood. Atravessei o deserto do Novo México, vi muito distante o início do Grand Canyon, atravessei o Texas e cheguei a Oklahoma, onde uma mexicana, que ficou boa parte da viagem apertando minha coxa, entrou no banheiro masculino da rodoviária com um árabe. Voltei a Massachussets, onde eu já tinha sido parado pela polícia e sido enganado por um vírus de computador pensando que eu seria preso pelo FBI.
No fim de tudo, eu não havia visto aquele ar de época, datado lá nos anos 1940 e 1950. As estradas hoje estão perigosas, são modernas, pelas quais os caminhões cortam o país. Aquela estrada não existe mais, não há mais aquele tempo quase suspenso, que demorava a passar. Sem pesar. Aquela estrada estava envelhecida. Kerouac oscula outra dimensão, não pude lhe dar um abraço, assim como não pude beijar Piaf quando estive na França, havia um mármore a lhe cobrir o túmulo. Mas sempre há um novo percurso, a nos seduzir com suas curvas. Qual será a próxima estrada a ser desvendada?
O percurso é físico e metafórico, os passos nunca param, nunca estamos inertes. Talvez a morte seja a última estrada, embora não gostemos de pensar nela Afinal, acho que todos nós procuramos essa estrada, é intrínseco e inconsciente. Fugimos dela a vida toda, mas no final, a gente se deixa seduzir. Enquanto isso, tentamos escapar, por entre trevos e desvios. Quanto a mim, ainda há inúmeras antes da derradeira. Assim espero!
E hoje, quando fico apertando a memória para contar os detalhes de tudo o que aconteceu, entre coisas boas e ruins, eu me lembro daquele sol morno, tentando vencer aquela neve acumulada, aquele frio de peito. Lembro-me daquela imensidão de terra, tão odiada por muitos, mas que é muito bem construída pela natureza. Lembro do céu rosado, com algumas tímidas estrelas e os cumes inatingíveis de montanhas que não cessam de passar pela janela do ônibus. Lembro daqueles motoristas falastrões, pois falar foi que lhes restou. Lembro-me daqueles imigrantes deslocados, longe de seus Méxicos, Colômbias, Líbanos, Perus, Marrocos, Argentinas, Brasis, Malis e Libérias. Eles que apalpam a desmatéria, tentando construir nova casa, percorrendo algumas trilhas sem roçado. Lembro-me da pequena que me amou no ônibus. Estaria ela viva, ou ainda se desloca por aí? Quando eu vejo isso tudo, eu penso em Dean Moriarty.

Em algum lugar entre a costa leste a costa oeste



22 junho, 2013

De como vejo o que se passa




De como vejo o que se passa
Luigi Ricciardi

Não sei dizer se sou totalmente de esquerda, mas sou muito simpático às suas ideias, apesar de não ser filiado a nenhum partido. A esquerda está, infelizmente, desunida e diluída. Qualquer coisa de caráter coletivo não é vista com bons olhos. O crescimento do individualismo em escala estratosférica travou a coletividade. Por isso eu acredito que o momento é propício para mudarmos essa esfera. Deixemos salas e quartos e nos juntemos a outros, cara a cara, para discutirmos, sem levar isso para o lado pessoal. No Brasil, parece-me que evitar a discussão é respeitar o outro, o que eu acho bobagem. Na França, por exemplo, respeitar a opinião do outro é discutir com ele. Os franceses são amantes históricos de embates ideológicos. Cinco minutos depois de uma discussão que parece que irá terminar em duelo físico, já lá estão tomando um vinho em algum café de Paris falando de arte. Acho que isso deveríamos copiar.
Até porque a discussão nos leva à auto-avaliação. Devo ser autocrítico, e tentar ver que posso muitas vezes estar errado ou não totalmente correto. Apoio e estou participando dos protestos que estão ocorrendo nas últimas semanas, apesar de achar que há ideias exageradas, tanto do “oba oba”, quanto do niilismo completo. Como diz meu amigo Fábio Fernandes, há muito Nostradamus para pouca profecia, gente cantando golpe de estado e outras coisas mais, para um dia dizer “olha, eu avisei”, enquanto toma uísque escocês no apartamento acarpetado.
            Há severas críticas ao movimento, dizendo que é falso, vazio e oco. Muita gente exige foco, e eu concordo, temos que focar e elencar as reivindicações e lutar cara a cara com os organismos diretos a quem reivindicamos. Porém, não dá para cobrar foco da maioria, nem consciência política clara, uma vez que essa população que mal sabe escrever o nome é que estava com o grito preso. Não dá pra exigir da massa discussão teórica comum a doutores universitários. O povo que não teve educação apropriada não pode ser exigido num primeiro momento, talvez guiado, mas não severamente criticado como vem sendo. Longe de chamar o povo de burro, que não entende teorias, ele só não teve acesso e grita da maneira que sabe gritar.
O que muda tudo é o tom empregado. Muita gente está dentro do movimento e parece estar realmente querendo fazer uma boa discussão e tentar ajudar a guiar as coisas. Mas tem muita gente que chama a todos de burros e fica debaixo do cobertor escrevendo seus rancores no facebook, dizendo que as coisas deveriam ser diferentes e condenando todo e qualquer ato. A mudança e as decisões têm de ser intramovimento. A discussão teórica ajuda, mas teorias muito profundas e discussões de salões acarpetados não vão muito à prática. A pseudo-intelectualidade pode diminuir a força dos movimentos. Se quiser ajudar, entre e discuta, participe, não fique na Lua olhando para a Terra com um binóculo com o dedo em riste.
            Realmente é difícil conter os gritos plurais, somos explorados há cinco séculos, e é bom que se exploda o grito. É claro que é um momento emocional, muito mais do que racional, porém necessário. Depois da explosão é que vem a razão, aí focamos, aí discutimos, aí decidimos. Foi o que eu disse uma vez em uma discussão, o movimento está muito mais para transbordante do que vazio. Claro que há muitas reivindicações bobas, como o pedido do impeachment da PRESIDENTE (presidenta não existe) Dilma, por exemplo. Estou longe de estar contente com o governo dela, porém não é a figura dela que deve ser demonizada, e sim a situação política, não a estrutura, pois a estrutura democrática é essencial, o que é errado é maneira como ela é conduzida. Pedir uma reforma da estrutura é pedir totalitarismo. O que penso que deve ser feito é uma reflexão do fazer político. É entender que o poder executivo talvez seja o que menos tenha poder. É saber que o poder legislativo é que talvez seja a maior concentração da corja do país, e que é lá que as leis são promulgadas, e a limpeza precisa ser feita lá. Porém, acredito que devemos focar os problemas locais, inicialmente municipais, depois estaduais, sem perder conexão com os nacionais.
            Entendo e já vi que muitas pessoas com tendências questionáveis de visão política estão se infiltrando no movimento. Acredito inclusive que isso não está sendo feito por gatos pingados, penso que há uma articulação organizada sim, embora pequena. Não digo que seja de fácil identificação, e nem dá para proibir a entrada das pessoas nas manifestações, é quase impossível, é como se fizéssemos uma entrevista com cada um perguntando “Você é militarista? Ah, então você não pode aderir”, até porque se há infiltração ninguém vai falar abertamente. Mas devemos abrir os olhos e tentar analisar, discutir em grupo, ouvir as pessoas, para que esse povo seja visto e seja podado de alguma forma. Não, eu não sei de que forma evitar esse pessoal. Estou longe de ter ideias conclusivas.
            Vi também pessoas que são completos niilistas e vão às manifestações para poder depois criticar um ou outro elemento que elas viram como negativo nas manifestações. Fica fácil criticar, a ideia já vem formada antes, de casa, realmente os olhos vão focar os erros, os acertos estão longe de serem citados por esse bando niilista. Vi muita gente no “oba oba” também, indo às manifestações como se fosse uma micareta, escolhendo com as amigas até o figurino mais interessante para usar nas passeatas. Cuidado com os extremos, galera!
            Entendo o medo em relação aos símbolos nacionais (bandeira, hino) de uma perspectiva histórica. Vários estados totalitaristas fizeram isso para levantar o ufanismo nas pessoas e conquistar as massas. Mas acredito que a coisa não seja tão radical assim. Nos protestos em 2010 na França a respeito do aumento da idade da aposentadoria (de 60 para 62 anos), vi que muitos franceses iam às ruas com a bandeira do país cantando La Marseillaise. Isso quer dizer que eles eram fascistas? Acredito que não. Povo que sofre precisa da figura de um herói (isso é bom e ruim ao mesmo tempo), e o povo brasileiro acabou elegendo as figuras do hino e da bandeira como uma referência pela qual lutar.
Quanto aos partidos políticos e o levantar das bandeiras nas passeatas, a coisa também é complicada. Vejo gente criticando o tal do apartidarismo, dizendo que no fundo se trata de um antipartidarismo, fato que já residiria numa esfera totalitária. Posso estar enganado, mas a coisa a meu ver é diferente. É entender que o povo não se sente mais representado por nenhum partido. Não é a negação de partidos políticos, eles podem e devem se expressar livremente. Mas a grande questão é: o que vai mudar na manifestação se eu levantar a bandeira do meu partido? Vejo uma ala da esquerda defendendo suas bandeiras de esquerda, ou seja, só o seu próprio umbigo, mas garanto que se aparecer uma bandeira de um partido que não tenha as mesmas ideias eles mesmos vão pedir para que as bandeiras se abaixem. Então, repito: No que isso vai ajudar? Realmente vai ajudar nos pedidos que estamos fazendo? Se sim, levantem-nas! Eu não acho que realmente ajude, embora eu ache que atrapalhe pouco.
É um exame de consciência individual. A luta está sendo travada em dois ou três pólos radicais e por vezes cegos em suas crenças e convicções cristalizadas. A maioria não se dá o benefício da dúvida, justamente em um momento onde muita coisa circula e muitas vozes falam, e as coisas estão bem diluídas. Tanto a direita extremista quanto a esquerda extremista acaba por fazer miséria onde passa (ditadura militar e cortina de ferro nos contaram essa história).
Sim, é democrático levantar as bandeiras, tanto quanto é democrático decidir pela inclusão ou não de bandeiras partidárias. Se a maioria decidir levar, é de direito levar, se a maioria disser que não quer, então quem perdeu deve exercer seu direito na democracia e aceitar ser vencido nessa decisão. Democracia não é só mostrar o seu lado, é saber que existem outras pessoas e que a maioria fala e deve decidir, mesmo que às vezes não concordemos com o discurso dela. Sim, eu sei que esses partidos de esquerda que foram perseguidos, porque os de centro ou direita nem são loucos de mostrarem a cara, é que faziam movimentos de protesto com poucas pessoas enquanto a massa estava distraída vendo a globo. Dou parabéns a quem fazia isso, movimentos nos quais eu mesmo raramente dava as caras. Mas o momento é outro.
Pois bem, devemos sim continuar saindo às ruas, protestando, mostrando aos governos que não estamos satisfeitos, que o povo tem sim sua voz. E não devemos ficar só nas ruas, devemos ler, discutir. Devemos fazer exame de consciência, pois, se o Brasil não está bem, é porque não estamos bem. Se o país é o corrupto é porque temos o jeitinho brasileiro. Se o congresso é uma zona, é porque só pensamos em carnaval pra inglês ver. Como já disse, a mudança, apesar de parecer meio utópica, é interna em cada um de nós
Enfim, estou longe de me considerar estar com a razão. As visões muitas vezes são turvas. Acho a discussão válida, o embate é primordial em um momento histórico. Porém, verdades absolutas só criam lados distintos que se detestam e se evitam. Dê a si mesmo o benefício da dúvida, que, penso eu, está longe de ser uma coisa ruim. E perdoem-me pelo texto meio “colcha de retalhos”, são muitos pontos a serem tratados.

PS: Lembremos de Slavoj Žižek quando do movimento em Wall Street
1)                           Que esse movimento não tenha no futuro tom nostálgico, isso tem que ser algo cotidiano.
2)                          Não nos apaixonemos por nós mesmos.


PS 2: Cuidado com a apropriação do discurso pela mídia. Cuidado para entender qual é o discurso dos movimentos e qual é o discurso das grandes redes. 


PS 3: Cuidado com os heróis dizendo “Eu sempre estive do lado de vocês”. Cuidado com mitos, sobretudo com o neto de um cara que não governou o Brasil porque foi morto uma noite antes de assumir. É só mito, nada diria que ele salvaria o Brasil pós-ditadura. 

17 março, 2013

Sou





Sou...
Luigi Ricciardi

Sou a noite no apagar das luzes. Sou a lamparina que se apaga e não retorna a se acender. E a luz muda dos postes que ilumina as ruas também sou eu.
Sou a chuva que penetra cruelmente nos ossos dos animais sem dono, sou também as entranhas animalescas e o paletó maltrapilho do mendigo encharcado pela nuvem eterna de descasos.
    Sou o perdido que anda no escuro da noite a ouvir sussurros infernais do vento. Sou esse vento.
   Sou a lágrima da vela que queima, sou o canto escuro do quarto, sou aqueles que não têm vela. Sou o rato observado por mim mesmo na esquina da rua mal iluminada. O observar já me torna rato.
    Sou o mendigo açoitado pela polícia porque teve fome, sou o bandido que mata e vê a cena do mendigo espancado. Sou a polícia abusiva.
    Também posso ser a menina que sonha em encontrar o amado, sou o amado a esperar na estação. Posso ser o trem que a conduz ao seu destino, mas sou o trilho descarrilado na montanha.
    Talvez eu seja o riquinho que dirige embriagado. Sou o copo e a bebida que o conduzem, ou mesmo o dinheiro que compra o mundo. Talvez eu seja o freio não usado a tempo, ou a menina morta na calçada.
   Sou o sangue a misturar-se no oriente, a bala que perfura a testa, a espada que transpassa. Sou o afago que toca os cabelos, sou o sabor do vinho de festa, sou o beijo que se auto-acaricia.
   Talvez a máquina do futuro, o motor enfurecido, os cálculos algoritmos. Ou cajado do profeta, a água do dilúvio, o anjo promissor.
   Sou a fotografia apagada, o pássaro preso na gaiola, a flor que não desabrocha, o gelo que não derrete, a chamada não atendida, o filme que não termina, a estrada bifurcada, o pulo dos chineses, o vento, a tempestade, um tornado. A sujeira no canto do belo quadro, as letras de fim de filme, os pontos nos finais das frases, o grão de areia do Saara, uma folha na Amazônia, um orvalho desprendido e precipitado no Nilo.
   Acabo por ser tudo, e por fim vejo que não sou nada do que fui. Nada sou, e nada virei a ser, pois fui tudo isso. E já que o sou, não preciso do nada. Mas o nada me atinge.
Creio que eu canto para não pensar em nada, não penso em nada para cantar. Penso em tudo para escrever, escrevo sem pensar. Sinto o que não sinto, será que não sinto? O que sinto?
Termino por ser sempre uma metáfora, por vezes paradoxo. Sou o contentamento e a melancolia a viverem vizinhas. Neste interlúdio nem vejo as nuanças, quando percebo já estou. Ao nível zero posso topar com uma pedra e descer aos abismos. A queda pode ser ainda maior se a pedra estiver no alto, dependendo do cume que escalo. A subida se torna maior, então. Sou essa subida.
E quanto à metáfora, sou-a de mim mesmo. Sou-a no tropeçar das pernas, no troféu do capitão, no frio da geleira, no chocar das águas nas rochas da praia. Sou o rádio ligado e a moça a sonhar com o futuro. A voz que não fala nunca; os olhos, que vendo, não vêem. Sou o querer que não quer, o mudar sem sair, o não querer mudanças.
   Sou o desejo espantado, o desejo realizado, o desejado não desejado. Desejo o corpo vizinho, tocar o corpo do outro. Desejo tocar a mim mesmo, desejo não desejar. Quero ser a libido, o desejo recolhido, a explosão do deleite prazeroso. Desejo ser a altura do prédio, a vontade do pulo, o medo de altura. Quero ser o correr feliz, o descobrir das coisas, a fonte da sabedoria. Quero ser o relógio eterno, o momento amiúde, o vão no tempo. Quero ver o futuro, ser o futuro, viver o passado. Mudar as peças de lugar, inverter as pessoas, trocar os casais, apagar os heróis. Quero ser crucificado, quero viver eternamente. Quero ser a vida, quero criar a vida, quero ser deus.
   Não. Quero ser o grão caído, não me importar com guerras, ser somente o camponês sorridente. Viver nas colinas, viver sem janelas, viver com um tapa-olho. Quero ser o isolamento, quero ser o não ferir, quero ser o que não sei. Pois tenho medo do infinito e temo vir a sê-lo.
   Tenho medo da dor, e por temê-la, ela vem antes de vir. Tenho medo do escuro, tenho medo da morte, tenho medo do não existir. E por temer minhas palavras não quero mais escrever, quero ser o não escrito. Sou a eternidade do pensar em ser, sou o eterno não querer. A partir de agora sou a caneta com que se escreve, sou a página virada, o livro que nunca fecha, sou este livro fechado!