17 março, 2013

Sou





Sou...
Luigi Ricciardi

Sou a noite no apagar das luzes. Sou a lamparina que se apaga e não retorna a se acender. E a luz muda dos postes que ilumina as ruas também sou eu.
Sou a chuva que penetra cruelmente nos ossos dos animais sem dono, sou também as entranhas animalescas e o paletó maltrapilho do mendigo encharcado pela nuvem eterna de descasos.
    Sou o perdido que anda no escuro da noite a ouvir sussurros infernais do vento. Sou esse vento.
   Sou a lágrima da vela que queima, sou o canto escuro do quarto, sou aqueles que não têm vela. Sou o rato observado por mim mesmo na esquina da rua mal iluminada. O observar já me torna rato.
    Sou o mendigo açoitado pela polícia porque teve fome, sou o bandido que mata e vê a cena do mendigo espancado. Sou a polícia abusiva.
    Também posso ser a menina que sonha em encontrar o amado, sou o amado a esperar na estação. Posso ser o trem que a conduz ao seu destino, mas sou o trilho descarrilado na montanha.
    Talvez eu seja o riquinho que dirige embriagado. Sou o copo e a bebida que o conduzem, ou mesmo o dinheiro que compra o mundo. Talvez eu seja o freio não usado a tempo, ou a menina morta na calçada.
   Sou o sangue a misturar-se no oriente, a bala que perfura a testa, a espada que transpassa. Sou o afago que toca os cabelos, sou o sabor do vinho de festa, sou o beijo que se auto-acaricia.
   Talvez a máquina do futuro, o motor enfurecido, os cálculos algoritmos. Ou cajado do profeta, a água do dilúvio, o anjo promissor.
   Sou a fotografia apagada, o pássaro preso na gaiola, a flor que não desabrocha, o gelo que não derrete, a chamada não atendida, o filme que não termina, a estrada bifurcada, o pulo dos chineses, o vento, a tempestade, um tornado. A sujeira no canto do belo quadro, as letras de fim de filme, os pontos nos finais das frases, o grão de areia do Saara, uma folha na Amazônia, um orvalho desprendido e precipitado no Nilo.
   Acabo por ser tudo, e por fim vejo que não sou nada do que fui. Nada sou, e nada virei a ser, pois fui tudo isso. E já que o sou, não preciso do nada. Mas o nada me atinge.
Creio que eu canto para não pensar em nada, não penso em nada para cantar. Penso em tudo para escrever, escrevo sem pensar. Sinto o que não sinto, será que não sinto? O que sinto?
Termino por ser sempre uma metáfora, por vezes paradoxo. Sou o contentamento e a melancolia a viverem vizinhas. Neste interlúdio nem vejo as nuanças, quando percebo já estou. Ao nível zero posso topar com uma pedra e descer aos abismos. A queda pode ser ainda maior se a pedra estiver no alto, dependendo do cume que escalo. A subida se torna maior, então. Sou essa subida.
E quanto à metáfora, sou-a de mim mesmo. Sou-a no tropeçar das pernas, no troféu do capitão, no frio da geleira, no chocar das águas nas rochas da praia. Sou o rádio ligado e a moça a sonhar com o futuro. A voz que não fala nunca; os olhos, que vendo, não vêem. Sou o querer que não quer, o mudar sem sair, o não querer mudanças.
   Sou o desejo espantado, o desejo realizado, o desejado não desejado. Desejo o corpo vizinho, tocar o corpo do outro. Desejo tocar a mim mesmo, desejo não desejar. Quero ser a libido, o desejo recolhido, a explosão do deleite prazeroso. Desejo ser a altura do prédio, a vontade do pulo, o medo de altura. Quero ser o correr feliz, o descobrir das coisas, a fonte da sabedoria. Quero ser o relógio eterno, o momento amiúde, o vão no tempo. Quero ver o futuro, ser o futuro, viver o passado. Mudar as peças de lugar, inverter as pessoas, trocar os casais, apagar os heróis. Quero ser crucificado, quero viver eternamente. Quero ser a vida, quero criar a vida, quero ser deus.
   Não. Quero ser o grão caído, não me importar com guerras, ser somente o camponês sorridente. Viver nas colinas, viver sem janelas, viver com um tapa-olho. Quero ser o isolamento, quero ser o não ferir, quero ser o que não sei. Pois tenho medo do infinito e temo vir a sê-lo.
   Tenho medo da dor, e por temê-la, ela vem antes de vir. Tenho medo do escuro, tenho medo da morte, tenho medo do não existir. E por temer minhas palavras não quero mais escrever, quero ser o não escrito. Sou a eternidade do pensar em ser, sou o eterno não querer. A partir de agora sou a caneta com que se escreve, sou a página virada, o livro que nunca fecha, sou este livro fechado!