AFINAL, QUE
ESTRADA?
Por Luigi Ricciardi
Conheci
On the Road não muito depois de um
dos meus sonhos morrer. Eu havia saído de um relacionamento conturbado do qual
não vale a pena nem falar. Nessa época eu estava tentando matar o meu pai,
mentalmente é claro, que é, ao menos dizem, a maneira da gente ser homem de verdade
e seguir a vida. Um dia, durante uma aula, os alunos estavam dizendo qual era o
livro preferido de cada um, e me deparei com esse livro, título em inglês,
pedante, insistindo em manter o título original, embora já houvesse uma
tradução em português.
Com a chegada desse livro se intensifica o que se chama de
minhas férias na estrada.
Sim,
férias, e não a vida toda. Não tenho culhões para ser uma espécie de santo beat
tal Jack Kerouac. Minha geração é medrosa, está longe de ser aquela dos anos
1950, que também vivia no marasmo, mas sabia viver. Eu até tinha botado a
mochila nas costas e ido me aventurar em Florianópolis, Curitiba, São Paulo,
Rio de Janeiro, e foi logo depois do fim de outro momento na minha vida, mas
ainda assim não tinha sido verdadeiramente uma aventura.
Na
Europa não vi estrada, não da maneira como se vê contemporaneamente. Voei, e não
realizei essa coisa de fetiche, ver essa linha branca e pura que corta o
asfalto, não vi uma francesinha de olhos claros com quem eu gostaria de me
casar e passar a vida colhendo lavandas. Não peguei carona com o povo frio
francês, não tive a chance de chamar uma bela sulista para um café e um Crème Brulée.
Trilho do bonde em São Francisco |
Quis
ver o charme e o fetiche estadunidense de perto. Estradas românticas, tipo
vídeo clipe. É, a gente vai criando sonhos bobos, mas é o que resta a uma
geração celular, bem mais perdida que aquela geração Coca Cola já cantada
antes. Resolvi ir sozinho de Boston a São Francisco, ida e volta, quase doze
mil quilômetros, para ver se eu encontrava alguma das imagens vistas no livro.
Juntei-me ao grupo de mais de cinqüenta mil pessoas que já tentaram fazer,
senão todo o trajeto, ao menos parte dele para tentar encontrar o mesmo. Quem
sabe ficar por lá, ver uma garota, tomar cerveja com o irmão dela, e dar um
pico pra alegrar. Essa seria a vida ideal. Hoje estou por entre árvores de uma
cidade hipócrita. Porque os sonhos se desfalecem tão facilmente? Porque a
elevação é tão efêmera?
Queria
ir de carro, mas meu primo que mora no Cape
Cod estava trabalhando em Nantucket
e não podia ir. Ouvi dizer que pegar carona agora era proibido e que as pessoas
tinham medo de levar multa por isso. Resolvi então ir de Greyhound, comprei uma passagem na internet por uma bagatela de
trezentos dólares. Nas primeiras quatro horas, eu já começara a reler On the Road. Sentei-me ao lado de um
esquiador, o cara parecia bacana, eu queria conversar, mas ele não deu espaço.
Eu queria mesmo era falar com todo mundo, conhecer algo novo, falaria até com a
brasileirinha nariguda com cara de evangélica que estava sentada no terceiro
banco. Eu estava tão contente que se ela quisesse orar por mim eu aceitaria.
Tudo era válido. Tinha uma negra muito bonita no outro banco, de um negrume
diferente da morena brasileira. E fiquei vendo essa paisagem crepuscular até
chegar à Nova Iorque.
Logo
na troca de ônibus, tomei uma bronca do motorista que me gritava “ID” para
mostrar alguma identificação e eu não entendia o inglês dele, aliás, eu não
entendia praticamente inglês nenhum, e fiquei sorrindo, balançando a cabeça,
cumprimentando-o várias vezes com cara de otário. Ele praticamente me bateu,
apontou para o papel e disse para mostrar uma foto, aí entendi. Entrei no
ônibus e comecei a ter a primeira decepção.
Eu
estava entre os nigers, que falam sem
parar, pareciam brigar, perto deles um grupo de italianos discutindo pareceria
estar recitando poemas. Nenhum deles me dirigiu a palavra, ainda bem, eu estava
com medo, mais das mulheres do que dos caras, elas cuspiam pra falar e
mostravam seus vãos entre os dentes. Aí um cara começou a ouvir hip hop.
Que belo início de viagem para alguém que
queria chegar Nova York, encontrar qualquer merda de trabalho na rua pra pegar a
primeira carona em direção a São Francisco, para fazer uma on the road, e parar por motéis baratos pelo caminho, bebendo
cerveja long neck e sonhando em caçar
fantasmas e transar com garotas loucas dentro do Impala em movimento. Nesse
sonho, eu chegaria em
São Francisco e trabalharia como ajudante da City Lights e nas horas vagas eu
trocaria umas palavras com o meu chefe Lawrence Ferlinghetti e ele me contaria
as loucuras quando aquela trupe de beatniks
aparecia na porta dele e da ideia que ele teve pra escrever o seu célebre Um Parque de Diversões na cabeça. Nada
disso aconteceu, é claro. Eu estava triste.
Viela Jack Kerouac ao lado da livraria City Lights |
Na
Filadélfia a coisa estava pior, eu não entendia uma palavra sequer do que as
pessoas diziam, e captava algumas palavras soltas no discurso que o motorista
fazia no microfone dentro do ônibus ao sair da rodoviária. Uma garota mexicana
trocou umas duas palavras comigo, pediu para sentar ao meu lado, no lugar de um
maluco desastrado que já havia derrubado suco no asteca que estava sentado à
frente. Eles trocaram de lugar, a menina sentou ao meu lado e começou a falar
em uma língua situada entre o inglês, o espanhol e o maia que ela precisava de
dinheiro e que faria qualquer coisa para conseguir. Eu já estava louco por
sexo, mas resolvi esperar. De repente, outro sujeito veio sentar no lugar dela,
ela foi para outro banco, atrás do sujeito desastrado e tentou roubar sua
carteira. Acabei entendendo o que significava esse “fazer tudo para conseguir”.
Passamos por
Pittsburgh, Columbus, Indianápolis (sim, eu tentei ver um carro de corrida, mas
não vi) e Saint Louis, onde uma motorista muito simpática fazia piadas,
conversava a viagem toda falando de como e porque ela havia escolhido tal
profissão, e que dava tapinha nas costas de todos e chamava todo mundo de honey. Ela ainda dava um belo caldo no
auge dos seus quarenta e tantos. A essa altura tudo o que se mexia e tinha um
buraco me chamaria a atenção.
Eu já estava
bem amigo do senhor desastrado. A cada parada tentávamos conversar. Ele era um
engenheiro solteirão de Trinidad e Tobago que resolvera fazer mochilões todos
os anos. Eu já havia melhorado a minha compreensão no inglês, mas o sotaque
dele era desastroso e minha comunicação pior ainda. Mas ficamos amigos mesmo
assim. Era um sujeito simpático, tentava me explicar as máquinas que ele
construía, falando da filha única que teve sem casar, que preferia a vida assim,
e de como ele gostava da sua ilha caribenha.
Passamos por
muitas cidades no centro do país. Em Lawrence achei que fosse ver os
Winchesters. Na maioria das rodoviárias, muitas delas citadas no livro de
Kerouac, eu esperava ver alguém com as mesmas características, uma alma penada
ou algo do tipo, que me pediria um dólar para poder tomar um café quente na
noite fria de quinze graus negativos. Não vi ninguém.
De longe, vi
um bar todo de madeira que parecia ter saído dos anos 1920 direto para o século
XXI, onde um negro tocava um violão velho e o outro tocava gaita. Era aquilo
que eu procurava. Mas paramos bem à frente, em uma lanchonete moderna com
garçonetes com uma educação engessada e gente apressada para dar uma cagada no
banheiro, pois o ônibus balançava muito. De modo que não vi o blues de beira de
estada.
Em algum
lugar entre Saint Louis e Kansas City, um maluco entrou no ônibus, disse que
estava pegando carona desde Miami e estava indo para “élei”, que era uma
maneira muito maneira de dizer Los Angeles. Ele vinha da Austrália, onde tinha
pegado várias ondas. Ele carregava sua prancha surrada e tinha um olhar de
louco que arde. Pensei, esse cara é o tipo de gente que procuro. Tentei
conversar com ele, mas meu inglês sustentou a conversa durante os dez primeiros
minutos, e, na meia hora seguinte enquanto esperávamos o ônibus que estava
atrasado, eu só balançava a cabeça concordando entre um yes e outro.
Chegamos a Denver,
a maravilhosa Denver que teve o privilégio de ter Kerouac, Cassady e Ginsberg
perambulando pela cidade à noite, e velhos vagabundos mendigando perto das
linhas de trem. Mas, em Denver eu só vi neve, e todo mundo dizia chavões. Entramos
no desértico Wyoming, parando entre uma lanchonete e outra no meio das
montanhas e da neve. Um vento de tristeza me congelou entre os vilarejos. Senti
saudade da minha gente. E de um corpo quente.
Foi quando
entrou uma linda garota, jovem, roupa de militar. Foi saudada pelo motorista
fanfarrão como se ela fosse a salvação do país. Ela estava indo para uma base
na costa oeste, mas não me lembro o nome da cidade. Eu estava sozinho no banco
duplo, e, logo após o apertado corredor, ela também estava sozinha. Ela se esticou,
ocupou os dois bancos, com as costas na lateral do ônibus. Começou a ler, e
disfarçadamente no início, e não tão disfarçadamente depois, começou a me
olhar.
Fiquei meio
recesso de ficar com uma militar, mas seu beijo era quente. Ela me contou um
pouco sua história, família de militares, precisava seguir a carreira da
família meio a contragosto. Ela me chamou de macaquinho branco, e disse que
queria ter um romance comigo. Só não gostava da minha barba, disse que eu tinha
cara de comunista. Combinamos um encontro em Boston para dali uma semana, mas
sabíamos que isso não aconteceria. Ela iria para a guerra física, e eu para a
psicológica. Eu não podia ficar ali, eu ainda tinha alguns livros para
escrever.
E o surfista
reapareceu em Salt Lake
City, enquanto a militar dormia encostada em mim. Começou a falar
alto, sozinho, dizendo que não se arrependia de ter transado com uma guria de
nove anos. Quis sentar a cada segundo em todos os bancos do ônibus, dava socos
no ar brigando com alguém. O motorista pediu pra todo mundo ficar sentado, pois
as estradas nas montanhas eram perigosas, e o surfista acabou sentando no colo
da mulher de um mexicano, daqueles mariachis com chapéus enormes. A briga
começou com o ônibus deslizando na pista cheia de gelo. Foi a minha pequena,
muito mais macha que eu, que acabou com toda aquela história ameaçando o louco
de prisão.
Cheguei a
Sanfran quatro horas depois do previsto, meu amigo já me esperava na rodoviária
há muito tempo. Antes disso, ficamos horas presos em uma nevasca no alto das
montanhas da Califórnia, entre uma gritaria de duas famílias enormes de negros
que estavam empolgados para chegar logo em Sacramento. Os
caras eram simpáticos, as garotas gordas e bonitas, e eu já entendia o que eles
falavam. Fiquei só de ouvidos na conversa toda. Fomos guinchados e deslizávamos
entre despenhadeiros. Minha pequena tinha ficado em Reno.
Foi bom
tomar um banho depois de tantos dias, e ver alguns rostos conhecidos. Durante
os quatro dias que fiquei na cidade da contra cultura, fiz estilo turista
alegre, tirando fotos, visitando pontos turísticos. Revi um grande amigo e sua
esposa, falamos da vida, dos destinos que se cruzam e se entrecortam, e da
beleza do futuro inesperado. Fui tentar ver o Ferlinghetti na City Lights e fiquei olhando pela janela
embaçada do Café Vesúvio para ver se
encontrava a mesa onde Kerouac tomava seus porres. Vi a belíssima ponte, andei
de metrô, subi as ruas extremamente íngremes de Berkeley e fui ao Píer 39, onde
vi vendedores de ostras que cantavam estilo havaiano. O museu beat estava
fechado.
Conheci duas
italianas malucas que tinham morado no Brasil e falavam um pouco de português.
Elas eram amigas de um cara do Mali, com quem finalmente consegui conversar em francês. Fumamos
um, mas elas queriam fazer um jogo estranho, queriam me beijar, só que antes eu
teria que fazer alguma coisa com o amigo delas, mas eu não havia entendido
direito. É claro que não fiquei pra ver, e fui dar uma volta na fétida Chinatown. Resolvi depois ir andar de bondinho a uma
bagatela de seis dólares a viagem. Fiz amizade com o condutor, um chinês
convertido ao catolicismo que havia visitado Portugal. Quando descobriu que no
Brasil se falava português e que havia uma santa negra por aqui ele ficou
encantado e disse que eu não precisava pagar a viagem de volta.
Na
rodoviária conheci duas mineiras e um baiano que também estavam em um mochilão,
e já haviam passado por Maringá. Elogiaram a cidade, ao que eu respondi: vocês
estão muito enganados. Dormi na rodoviária, abraçado à mochila, pois meu ônibus
tinha sido cancelado por conta da nevasca.
Deserto do Novo México |
Frisco era
linda, mas extremamente triste. A chuva fina e fria que cortou minha passagem
por lá me dizia que mesmo na Califórnia o mundo tinha mudado. Tomei chuva para
engolir um hambúrguer, e me sequei com a calefação da rodoviária. Dormi de novo
no chão da estação, pois eu já não tinha mais dinheiro para hotel, nem sabia
voltar para a casa do meu amigo. No dia seguinte, enfim, meu ônibus saiu.
Passei por
Los Angeles e não consegui ver o famoso letreiro de Hollywood. Atravessei o
deserto do Novo México, vi muito distante o início do Grand Canyon, atravessei o Texas e cheguei a Oklahoma, onde uma
mexicana, que ficou boa parte da viagem apertando minha coxa, entrou no
banheiro masculino da rodoviária com um árabe. Voltei a Massachussets, onde eu
já tinha sido parado pela polícia e sido enganado por um vírus de computador
pensando que eu seria preso pelo FBI.
No fim de
tudo, eu não havia visto aquele ar de época, datado lá nos anos 1940 e 1950. As
estradas hoje estão perigosas, são modernas, pelas quais os caminhões cortam o
país. Aquela estrada não existe mais, não há mais aquele tempo quase suspenso,
que demorava a passar. Sem pesar. Aquela estrada estava envelhecida. Kerouac
oscula outra dimensão, não pude lhe dar um abraço, assim como não pude beijar
Piaf quando estive na França, havia um mármore a lhe cobrir o túmulo. Mas
sempre há um novo percurso, a nos seduzir com suas curvas. Qual será a próxima
estrada a ser desvendada?
O percurso é
físico e metafórico, os passos nunca param, nunca estamos inertes. Talvez a
morte seja a última estrada, embora não gostemos de pensar nela Afinal, acho
que todos nós procuramos essa estrada, é intrínseco e inconsciente. Fugimos
dela a vida toda, mas no final, a gente se deixa seduzir. Enquanto isso,
tentamos escapar, por entre trevos e desvios. Quanto a mim, ainda há inúmeras
antes da derradeira. Assim espero!
E hoje,
quando fico apertando a memória para contar os detalhes de tudo o que
aconteceu, entre coisas boas e ruins, eu me lembro daquele sol morno, tentando
vencer aquela neve acumulada, aquele frio de peito. Lembro-me daquela imensidão
de terra, tão odiada por muitos, mas que é muito bem construída pela natureza.
Lembro do céu rosado, com algumas tímidas estrelas e os cumes inatingíveis de
montanhas que não cessam de passar pela janela do ônibus. Lembro daqueles
motoristas falastrões, pois falar foi que lhes restou. Lembro-me daqueles
imigrantes deslocados, longe de seus Méxicos, Colômbias, Líbanos, Perus, Marrocos,
Argentinas, Brasis, Malis e Libérias. Eles que apalpam a desmatéria, tentando
construir nova casa, percorrendo algumas trilhas sem roçado. Lembro-me da
pequena que me amou no ônibus. Estaria ela viva, ou ainda se desloca por aí?
Quando eu vejo isso tudo, eu penso em Dean Moriarty.
Em algum lugar entre a costa leste a costa oeste |