01 junho, 2014

COMO SE HOUVESSE AMANHÃ







Como se Houvesse Amanhã
Luigi Ricciardi
E quem disse que ainda existe o hoje? Tudo é efêmero, e chega de clichês dizendo que a vida é efêmera, pois ela é e já sabemos disso. Mas as coisas que nos cercam se tornaram mais efêmeras ainda por poderes que vêm de cima, de alguém que manda e do qual não vemos a cara. A notícia de ontem já é muito velha hoje, causa repulsa como se viesse da Idade Média. Parece que nem o ontem temos mais, somos figuras pré-moldadas soltas e sem alicerce, até Deus está morto, e o matando nada é permitido mais, pois não temos em quem colocar a culpa de nada, das injustiças, dos problemas sociais etc. O ser humano é muito egocêntrico para assumir qualquer culpa, precisa de algo ou alguém que o isente, e Deus exercia esse papel. Não era vivo que proibia as coisas por meio de uma religião caduca, mas morto. Ele priva o ser humano de ser mais cruel do que já é. Esse foi o castigo que ele nos deixou. E justo! Pagamos o alto preço. No fundo pagamos o preço de muita coisa, até o preço da liberdade, que é um conceito questionável. Diga-me, minha pequena descerebrada, liberdade pra você é só abrir as pernas pra mim quando tem vontade e pra quem você quiser também quando lhe vem à telha? Esqueça, não precisa responder. Vá ao banheiro para eu poder continuar conversando aqui com o senhor Leitor. Liberdade pra ela foi colocar aqueles não sei quanto miligramas no peito. Diz que foi uma libertação, a família dela era muito religiosa e ela não podia fazer nada. Agora ela pode beber, colocar peitos, fazer academia, ir na balada. Até cursar universidade, veja só. Ela teve inclusive uma fase marxista, mas não passou de três relações lésbicas e um protesto contra as mulheres casadas. Depois desistiu disso e foi trabalhar no shopping. Por qual razão eu ainda como ela? Ah sei lá, eu também sou condicionado, o que eu não entendo é a razão dela dar pra mim toda semana, os marombados estão à solta. Enfim, falemos de outra coisa, ela está vindo. Por esses dias eu andava lá pelos corredores da universidade e, saindo de um dos blocos, eu vi escrito na parede a palavra “goze”. Acho que quem escreveu aquilo pensou em um sentido libertário, que no fundo está mais que démodé. Olha só, lá vou eu agora defender modernidades, sou uma peça em contradição. Enfim. Há tempos atrás se uma mulher gozasse, por exemplo, tinha de se tratar, era coisa do demônio, imagina, mulher se entregando assim aos prazeres da carne é sirigaita, mulher de verdade tem de servir ao seu homem, à reprodução e aos afazeres domésticos. Hoje em dia nessa pseudo-liberdade, todo mundo prega que podemos fazer o que quiser, não há limites para o prazer. Mas esse imperativo reprime. O imperativo impede a coisa de se realizar. Torna-a obrigação e não ruptura. Quem não goza hoje tem de ir ao psicólogo, mas há muita gente pagando de sexualmente feliz que é recalcado. E recalque é classificação para tudo o que não seja ser bem resolvido. Se você não exibe a buceta durante um baile funk você é recalcada. Gozar é uma ordem, e caso você não queira gozar você tem problemas. Mas isso é discursinho. As pessoas são medrosas, não é mesmo senhor Leitor? Eu mesmo sou um covarde, um calhorda, um canalha. Não existe livro aberto. Ninguém se expõe ao público, nem perfis públicos, são fachadas criadas, são personagens que eles mesmo criam. O privado não pode se tornar público, e não falo de instituições. Todo mundo tem um monstro sob a cama, e ele é uma parte de nós mesmos. Se esses monstros se desnudassem, o mundo entraria em colapso. O que ainda mantém o mundo minimamente seguro é fingir que nada acontece. E é por isso que todo mundo prega hoje em dia a felicidade perene e fácil, como se o próprio respirar já fosse felicidade. Tudo bem, não sou burro o suficiente de dizer que não gosto de viver, não vou me cortar os pulsos, pois gosto demais do meu corpo para vê-lo mutilado, e gosto muito de livros, sexo, rock, entre outras coisas para querer morrer cedo. Mas essa coisa de “sou resolvido” é puro artífice. No fundo essa gente é reprimida. Ninguém é bem resolvido, e não o é porque sabe, justamente voltando àquele clichê lá do início, que não há amanhã, que por mais que se faça planos você pode morrer, e quanto mais tentamos apagar a imagem da morte, mais ela se constrói aos nossos olhos como um sujeito ameaçador e impiedoso. Ah, então ela tem que ser familiar? Jamais, ela nunca poderá ser, não na maneira como nossa sociedade está construída. Depois dessa é melhor escondermos os canivetes da casa. Linda, pegue pra gente umas cervejas, por favor. Como? Agora sou machista porque pedi com delicadeza pra você pegar umas cervejas só porque você está mais perto da geladeira? Deixa pra lá, eu pego. E você, o que acha? Mas, hein? A filosofia é a falta do que fazer? Bem, digamos que eu acho que a metafísica às vezes é só um estado, depende de se estar de bom humor ou não, até uma comédia romântica desce quando se está de bom humor. Mas normalmente eu estou de mal humor, as coisas me cansam muito rápido. Aproveitando que ela saiu um pouco, posso te dizer, ainda bem que eu a como uma vez por semana, ou às vezes mais raro que isso, quem suportaria uma mulher gostosa assim o tempo todo? Se eu fosse seu namorado não aguentaria o olhar dos outros pros decotes e saias que ela usa. Imagina, a vida toda ao lado dela, a quais ordens tácitas eu não estaria obedecendo? Mas, pensando bem, mulher bonita ou feia não serviria para mim, e não serviria para ninguém se a vida fosse eterna. Imagine, saber que você vai se casar e vai viver eternamente ao lado de alguém é algo assombrosamente terrível. O casamento só existe porque há a morte para separar. Mas bem, estamos voltando a esse assunto. Mudemos. Um dia na mesa de bar, eu e um amigo entramos em um embate para tentarmos entender se o mundo é simétrico ou assimétrico. Ele defendia a primeira causa, eu a segunda. Ele dizia que o mundo era uma perfeição, calculado por alguma mão. Eu já penso que é na assimetria que o mundo é belo, essas curvas e imperfeições sem serem pensadas. Porém, e se alguma coisa ou alguém tivesse mesmo pensado no mundo o resultado deveras culminaria em algo simétrico? E o próprio acaso também não poderia dar em simetria? O conjunto das coisas assimétricas também não seria assimetria? Ficamos discutindo por horas fumando baseado e não chegamos à conclusão alguma. Mas sabemos que nem as montanhas possuem amanhã. Elas serão engolidas no fim dos tempos. Oi? Onde? Feira de interatividade? Agora você deu pra ser fã dessas coisas? Ok, não estou criticando, tá, me liga depois, tchau? Essa agora! Essas coisas interativas me assustam um pouco. Tem um filósofo que diz que estamos na época da interpassividade e não da interatividade. Temos coisas para que elas realizem funções para nós, e assim estamos livres de fazê-las. Mas isso nos torna passivos diante do mundo. E para aguentar essa interpassividade, as pessoas compram roupas, atitudes e amigos, e se pregam de loucos. Hoje em dia loucos são gente de dinheiro, que não sabe fazer o que com o que tem em mãos,  aí inventa uma revolta, coloca boné virado, anda de skate, ou vem falar de socialismo dormindo em berço de ouro, fica alternativo, muda de opção sexual, toma um porre e dá pra todo mundo da festa, e daí vem dizer que é louco postando frases no facebook “só os loucos entendem”. Esses bobinhos estão muito longes de um Van Gogh, cortar a própria orelha para mim é sim um sinal de loucura. Para mim, a loucura tem cara de clareza, de entendimento, é quando as coisas fazem sentido. Os beats não eram loucos, mas tinham chegado ao entendimento do todo e por isso fizeram o que fizeram, mas alguns se perderam. Mas é assim o gênero humano. Nem eles tiveram amanhã. Vai, vamos parar com isso, falemos de futebol. Quer outra cerveja?