Como se Houvesse Amanhã
Luigi Ricciardi
E quem disse que ainda existe o hoje? Tudo é
efêmero, e chega de clichês dizendo que a vida é efêmera, pois ela é e já
sabemos disso. Mas as coisas que nos cercam se tornaram mais efêmeras ainda por
poderes que vêm de cima, de alguém que manda e do qual não vemos a cara. A
notícia de ontem já é muito velha hoje, causa repulsa como se viesse da Idade
Média. Parece que nem o ontem temos mais, somos figuras pré-moldadas soltas e
sem alicerce, até Deus está morto, e o matando nada é permitido mais, pois não
temos em quem colocar a culpa de nada, das injustiças, dos problemas sociais
etc. O ser humano é muito egocêntrico para assumir qualquer culpa, precisa de
algo ou alguém que o isente, e Deus exercia esse papel. Não era vivo que proibia
as coisas por meio de uma religião caduca, mas morto. Ele priva o ser humano de
ser mais cruel do que já é. Esse foi o castigo que ele nos deixou. E justo!
Pagamos o alto preço. No fundo pagamos o preço de muita coisa, até o preço da
liberdade, que é um conceito questionável. Diga-me, minha pequena descerebrada,
liberdade pra você é só abrir as pernas pra mim quando tem vontade e pra quem
você quiser também quando lhe vem à telha? Esqueça, não precisa responder. Vá
ao banheiro para eu poder continuar conversando aqui com o senhor Leitor.
Liberdade pra ela foi colocar aqueles não sei quanto miligramas no peito. Diz
que foi uma libertação, a família dela era muito religiosa e ela não podia
fazer nada. Agora ela pode beber, colocar peitos, fazer academia, ir na balada.
Até cursar universidade, veja só. Ela teve inclusive uma fase marxista, mas não
passou de três relações lésbicas e um protesto contra as mulheres casadas.
Depois desistiu disso e foi trabalhar no shopping. Por qual razão eu ainda como
ela? Ah sei lá, eu também sou condicionado, o que eu não entendo é a razão dela
dar pra mim toda semana, os marombados estão à solta. Enfim, falemos de outra
coisa, ela está vindo. Por esses dias eu andava lá pelos corredores da
universidade e, saindo de um dos blocos, eu vi escrito na parede a palavra
“goze”. Acho que quem escreveu aquilo pensou em um sentido libertário, que no
fundo está mais que démodé. Olha só, lá vou eu agora defender modernidades, sou
uma peça em contradição. Enfim. Há tempos atrás se uma mulher gozasse, por
exemplo, tinha de se tratar, era coisa do demônio, imagina, mulher se
entregando assim aos prazeres da carne é sirigaita, mulher de verdade tem de
servir ao seu homem, à reprodução e aos afazeres domésticos. Hoje em dia nessa
pseudo-liberdade, todo mundo prega que podemos fazer o que quiser, não há
limites para o prazer. Mas esse imperativo reprime. O imperativo impede a coisa
de se realizar. Torna-a obrigação e não ruptura. Quem não goza hoje tem de ir
ao psicólogo, mas há muita gente pagando de sexualmente feliz que é recalcado.
E recalque é classificação para tudo o que não seja ser bem resolvido. Se você
não exibe a buceta durante um baile funk você é recalcada. Gozar é uma ordem, e
caso você não queira gozar você tem problemas. Mas isso é discursinho. As
pessoas são medrosas, não é mesmo senhor Leitor? Eu mesmo sou um covarde, um
calhorda, um canalha. Não existe livro aberto. Ninguém se expõe ao público, nem
perfis públicos, são fachadas criadas, são personagens que eles mesmo criam. O
privado não pode se tornar público, e não falo de instituições. Todo mundo tem
um monstro sob a cama, e ele é uma parte de nós mesmos. Se esses monstros se
desnudassem, o mundo entraria em colapso. O que ainda mantém o mundo
minimamente seguro é fingir que nada acontece. E é por isso que todo mundo
prega hoje em dia a felicidade perene e fácil, como se o próprio respirar já
fosse felicidade. Tudo bem, não sou burro o suficiente de dizer que não gosto
de viver, não vou me cortar os pulsos, pois gosto demais do meu corpo para
vê-lo mutilado, e gosto muito de livros, sexo, rock, entre outras coisas para
querer morrer cedo. Mas essa coisa de “sou resolvido” é puro artífice. No fundo
essa gente é reprimida. Ninguém é bem resolvido, e não o é porque sabe,
justamente voltando àquele clichê lá do início, que não há amanhã, que por mais
que se faça planos você pode morrer, e quanto mais tentamos apagar a imagem da
morte, mais ela se constrói aos nossos olhos como um sujeito ameaçador e
impiedoso. Ah, então ela tem que ser familiar? Jamais, ela nunca poderá ser,
não na maneira como nossa sociedade está construída. Depois dessa é melhor
escondermos os canivetes da casa. Linda, pegue pra gente umas cervejas, por
favor. Como? Agora sou machista porque pedi com delicadeza pra você pegar umas
cervejas só porque você está mais perto da geladeira? Deixa pra lá, eu pego. E
você, o que acha? Mas, hein? A filosofia é a falta do que fazer? Bem, digamos
que eu acho que a metafísica às vezes é só um estado, depende de se estar de
bom humor ou não, até uma comédia romântica desce quando se está de bom humor.
Mas normalmente eu estou de mal humor, as coisas me cansam muito rápido.
Aproveitando que ela saiu um pouco, posso te dizer, ainda bem que eu a como uma
vez por semana, ou às vezes mais raro que isso, quem suportaria uma mulher
gostosa assim o tempo todo? Se eu fosse seu namorado não aguentaria o olhar dos
outros pros decotes e saias que ela usa. Imagina, a vida toda ao lado dela, a
quais ordens tácitas eu não estaria obedecendo? Mas, pensando bem, mulher
bonita ou feia não serviria para mim, e não serviria para ninguém se a vida
fosse eterna. Imagine, saber que você vai se casar e vai viver eternamente ao
lado de alguém é algo assombrosamente terrível. O casamento só existe porque há
a morte para separar. Mas bem, estamos voltando a esse assunto. Mudemos. Um dia
na mesa de bar, eu e um amigo entramos em um embate para tentarmos entender se
o mundo é simétrico ou assimétrico. Ele defendia a primeira causa, eu a
segunda. Ele dizia que o mundo era uma perfeição, calculado por alguma mão. Eu
já penso que é na assimetria que o mundo é belo, essas curvas e imperfeições
sem serem pensadas. Porém, e se alguma coisa ou alguém tivesse mesmo pensado no
mundo o resultado deveras culminaria em algo simétrico? E o próprio acaso
também não poderia dar em simetria? O conjunto das coisas assimétricas também
não seria assimetria? Ficamos discutindo por horas fumando baseado e não
chegamos à conclusão alguma. Mas sabemos que nem as montanhas possuem amanhã.
Elas serão engolidas no fim dos tempos. Oi? Onde? Feira de interatividade?
Agora você deu pra ser fã dessas coisas? Ok, não estou criticando, tá, me liga
depois, tchau? Essa agora! Essas coisas interativas me assustam um pouco. Tem
um filósofo que diz que estamos na época da interpassividade e não da
interatividade. Temos coisas para que elas realizem funções para nós, e assim
estamos livres de fazê-las. Mas isso nos torna passivos diante do mundo. E para
aguentar essa interpassividade, as pessoas compram roupas, atitudes e amigos, e
se pregam de loucos. Hoje em dia loucos são gente de dinheiro, que não sabe
fazer o que com o que tem em mãos, aí inventa
uma revolta, coloca boné virado, anda de skate, ou vem falar de socialismo
dormindo em berço de ouro, fica alternativo, muda de opção sexual, toma um
porre e dá pra todo mundo da festa, e daí vem dizer que é louco postando frases
no facebook “só os loucos entendem”. Esses bobinhos estão muito longes de um
Van Gogh, cortar a própria orelha para mim é sim um sinal de loucura. Para mim,
a loucura tem cara de clareza, de entendimento, é quando as coisas fazem
sentido. Os beats não eram loucos, mas tinham chegado ao entendimento do todo e
por isso fizeram o que fizeram, mas alguns se perderam. Mas é assim o gênero
humano. Nem eles tiveram amanhã. Vai, vamos parar com isso, falemos de futebol.
Quer outra cerveja?