22 julho, 2014

HUMANOS SÃO HUMANOS (?) - ENSAIO SOBRE A EVOLUÇÃO

Conto pertencente ao livro Anacronismo Moderno, lançado em 2011. 


HUMANOS SAO 
HUMANOS (?)

         Houve um tempo em que tudo era imprevisível. A lógica era disciplina excluída da totalidade terrena. O virar à esquina escondia-se como um monstro aquático, um ser de lendas e mitos presente em corpo, carne e dentes. Nefasto passado, arrancador de suspiros de espíritos amedrontados com sua lembrança, quase sempre afastada das conversas sociais. A morte era em si maiúscula, e ainda vestia preto. Gotas abastadas alcoolicamente e discussões com garrafas na cabeça, domingo despretensioso a andar sob a rua aparentemente deserta, cigarros relaxadores, traições gozantes, salgadinhos com efeito longo, mas precisamente mortais, todos eles. O acaso, rei das situações, dava seu às de copas. Isso tudo nas épocas do controle remoto, artefato indígena.
         Isso fora tudo antes da lei, medicinicamente regrada, a de não se morrer mais antes dos cem anos. Conta-se que a euforia ganhou carnavais, vida eterna até as dez décadas, símbolo da liberdade e vitória (temporária) contra a gadanha impiedosa. Livre do jugo e do acaso da senhora de preto, planeja-se tecnicamente, como um projeto de guerra, todos os passos tranqüilos da existência terrena. Uma ou duas faculdades? Quantas viagens à Europa? Três filhos até os quarenta, e depois os sonhados netos. Se um rim se apedrejava por dentro um novo lhe era dado. Um coração desritmado encontra um substituto a preço de banana. Tudo passou a ser quase eterno na terra da morte.
Mas se da vida e da morte não há senão histórias, esta é mais uma fábula pertencente a tal classe. AIDS e cânceres eram maus de um passado nem presente em livros didáticos, excluídos da nova realidade, duradoura e segura. O porvir, contudo, limitava-se, sabendo já os mais atentos à narrativa, a uma certa idade: os cem anos. Alcançando tal feito, a sociedade aplaudia a conquista e um letal líquido inserido nas veias enviava o felizardo ao nada da existência. E de que importa agora, o tudo não pode ser alcançado, e há aqueles que dizem que o tudo não é nada, mero título para o fracasso, quando lá se chega, vê-se que o que se teve é senão o nada mesmo.
         O pior de tudo nunca fora morrer, fora nunca saber quando se morreria. O mundo aqui é mais previsível, o encontro com a morte tem hora marcada para todos. Linda nova teologia, o próprio boi se dedicava ao abate crendo que, após tal feito, claro está, alcançando a idade máxima permitida por lei, não se conseguiria mais nada encarar. As dores de morte, mitos de lendas anciãs, regressariam do túmulo para atacar a vítima, visto que a medicina o abandonaria se decidisse não ser vacinado com a seringa da morte. Logo, não se viu ato algum de enfrentamento da vida após o soprar das cem fatídicas velinhas. Inteligente constituição não previu lei, convenceu discursivamente durante os novos séculos cada habitante. Cibernético convencimento de maciças leis do século XXII.
         Eis, por intermédio sabe-se lá de deuses antigos ou de Lilith, nasceu em campo infértil semente de Aquiles grego, força revestida de clarividência. José, comum de suas suburbanices, no soprar de suas cem velas, não quis ser picado pela agulha do destino. Revolução familiar imediata, ovelhas governamentais, amamentadas sem saber, ecrã persistente, sobrevivido mesmo após décadas de descrédito de filósofos engajados. Foi expulso de casa, virou notícia de novo jornal. Em todos os cantos, sobretudo na habitadíssima Antártida, centro do novo mundo espaçocibernético, dadora de regras e leis intransponíveis.
         Atentado à nova modernidade essa recusa, onde já se viu, volta ao primitivismo, lutou-se tanto para aqui chegar e tudo isso se desfenestra. Quiseram-lhe a morte obrigada, mas agora sofrida, já que quis voltar ao passado. Pediram-lhe o fuzilamento, a cadeira elétrica, métodos outrora utilizáveis. Alguns, mais exaltados, clamaram por uma tal cruz, usada em tempos longínquos. Se as brigas entre negros e brancos, orientais e ocidentais, homens e mulheres eram coisas do passado, agora se via o ódio pelo outro nutrir-se pelos não-mortos, neste caso ao único representante da nova classe.
         Não encontraram maneira de como extingui-lo, mas sim como aniquilá-lo aos poucos. Não conseguia emprego, não havia quem o vendesse sequer migalhas. Partilhava os restos dos cães na madrugada gélida das ruas. Na calada, umas quantas bebidas furtava para apagar a dureza do pesar. Era visto por vezes estendido ao sol fumegante nos cantos das calçadas. Os passantes, utilizando-se de suas filosofias de roer osso, usurpavam-lhe o destino, criticando seus novos passos. Mas porque a dor? Como alguém escolhe isso? Diziam isso ao vê-lo ébrio de seus quase cento e um.
         E se de melancia no pescoço vive a raça humana, eis que se puseram corredores atrás do nosso Forrest Gump. Avalanches de vacinas renegadas desceram o morro, beijando o mar da insatisfação. Foram aos bares esquinais, a desafiarem a foiçuda, para ver se ela realmente era a macha que fora nos tempos longínquos. E a encontravam: uma dor no peito, um passo mal dado na escada, três copos além da consciência. A diversão era vê-la de frente e brincar de pique-esconde. Desviar do carro no último segundo, subir o prédio pelo lado de fora com só uma corda quando os ossos já não têm mais o formol governamental, o vômito da bebedeira, os 450 km/h na nova rodovia.
        De tanto lutar, algum tempo depois, uma década talvez, já não se sabe, cansou-se e lá se foi José e sua clarividência a encontrarem aquela que se veste de negro. A segurança e a previsibilidade devem ser-nos inimigas. As capas de algodão têm agora franjas de seda. Daqui onde estamos se entende ainda menos o que acontece aí nessa terra do tempo. Um dia discutindo isso com Deus, perguntando a ele a razão de tal ato, ele confusamente me responde: Humanos são humanos!