26 abril, 2015

JOTAGÊ NA RADIO INCONSCIENTE

Afinal, tudo não passou de uma brincadeira lançada por um jornalista polêmico ou há realmente uma conspiração em torno do possível show de João Gilberto em Maringá? Muita gente cuspiu na brincadeira ridícula, outras se tornaram uma espécie de personagem de Umberto Eco. Vários escritores se pronunciaram, escrevendo sua versão. Outros vociferaram contra mim via inbox no facebook, por tê-los citado. O texto foi à Araraquara, chegou à pós-graduação. De lá, dizem que foi levado para São Paulo, Rio e Buenos Aires. Uma fonte minha garante que Carlos Gardel teria tocado em São Paulo e que também há muito mistério em um possível show do J.G. na capital porteña. Já ouvi gente afirmando que isso tem a ver com wikileaks. Outros dizem que tudo isso seria uma conspiração alemã para a instalação do quarto reich. E eu o que sei disso tudo? O tema me obcecou, mas temo pela minha vida. Por isso vou somente escrever ficção a partir de agora, e deixo o limiar entre um e outro para os mais corajosos. Eis minha despedida. Espero que sirva para algo!
Fã que não quer se identificar teria tirado uma foto do show do João Gilberto em Maringá


J. G.
Luigi Ricciardi

                Achei que não fosse me envolver em tais historietas e nessa caça por detalhes de um possível acontecimento do qual todo mundo guarda um mistério esquizofrênico. Há semanas que não se fala de outra coisa na cidade. Méritos ao Alexandre Gaioto (o vendedor de sonhos e fábulas lado b que alimentam os sonhos dos literatos e amantes da música) que lançou o mistério típico das narrativas conspiratórias do Marcos Peres.
  
Luigi Ricciardi e Alexandre Gaioto
              Essa história toda sobre o possível show do João Gilberto em Maringá e o mistério que o cerca foi uma boa cartada do jornalistinha. A partir daí todo mundo resolveu escrever. O já citado Peres fez mais uma de suas boas histórias, citando-me inclusive, assegurando que eu teria dito que tudo não passava de uma tentativa alemã de conquistar o Brasil – como se já não bastasse a Copa do Mundo do ano passado.
Fiquei na moita esperando as versões, que tiveram seus próprios méritos, todas muito bem escritas. Nessa brincadeira, o Reginaldo Dias escreveu um dos melhores textos de sua carreira, segundo dizem. Houve versões também do Victor Faria e do Wilame Prado, Jary Mércio. Esperei algo memorialista do Oscar (de uma história desmemorizada), mas fez bem: ameaçou processar o Gaioto. Alguns dizem que o jornalista recebeu inclusive telefonemas anônimos com ameaças de morte. A ironia ácida do Ademir Demarchi se fez presente. Fiquei na expectativa de uma versão que contivesse algo relacionado ao Grêmio Maringá ou uma atmosfera noir, mas o Nelson Alexandre não se pronunciou, assim como o Marco Hruschka, de quem esperava um soneto petrarquiano ou, pelo menos, alguma máxima facebookiana. Com o André Simões já é mais difícil competir, o rapaz é devoto de São João del Gilberto (mais que de Brian Wilson?). Em uma mesa de bar, encorajei o Zé Flauzino a entrar na peleja. Sinalizou positivamente, mas desistiu em seguida – tinha dois manuscritos de futuro prêmio Nobel pra corrigir. E cadê a versão “em bordel” da Bruna Siena? De qualquer forma, mesmo que alguns não se pronunciassem, a história tomou enormes proporções.
                Achei que com a repercussão o resto do estado se interessaria. Fiquei esperando o Miguel Sanches Neto se pronunciar, resgatando algum fato histórico ou dizendo que fora tudo conspiração neonazista. Dalton Trevisan, caso decidisse entrar na brincadeira, diria que era culpa da Polaquinha, oh Glória, que frequentava o Santo Inácio. Aquela que, todos os dias, ao sair do colégio, como diz o Gaioto, prosódico maior de seu mestre, dava lambidas na melhor raspadinha da cidade. “Oh raspadinha do Santo Inácio”.  A vizinha Londrina fingiu que não era com ela – jamais daria corda para histórias inautênticas de uma terra cujo sol brilhava menos que lá.
"Coxinhas" de Bueno de Andrada
                Eu já nem lembrava disso tudo, estava focado no meu doutorado cuja vaga veio a muito custo. Uma vez por semana eu pego minha uma mochila, boto uma muda de roupas e alguns livros e vou para Araraquara estudar. Isso vai durar ainda alguns anos. Passo algumas horas na casa de um amigo que mora perto do campus, antes de ir e depois de voltar das aulas. Em um desses dias, num fim de tarde, ele me convidou para ir a Bueno de Andrada, distrito ali perto, para comer as famigeradas coxinhas de frango.
                Imediatamente me lembrei do Ignácio de Loyola Brandão dizendo, quando estava de passagem por Maringá, que a melhor coisa da sua terra eram as coxinhas. Fomos lá provar. A fila era imensa e a coxinha deveras saborosa. Minutos depois de me saciar, vejo um alvoroço no boteco: era o próprio Ignácio de Loyola que chegava para provar do prato regional. Estava de passagem pela cidade e não deixaria de degustar a iguaria. Foi atendido de pronto, com duas coxinhas e uma cerveja trincando. De imediato quis falar com ele. Os primeiros momentos foram dificílimos, todo mundo queria chegar perto do filho ilustre da cidade. Fui paciente e esperei. Por sorte, eu estava lendo o Zero e levei o exemplar para que ele o autografasse com o intuito de bater um papo com um ídolo, de pedir conselhos de um escritor canônico a um escritor iniciante.
                Quando me toquei estava sentado na mesa com ele e mais umas dez pessoas, falando de musas do cinema dos anos sessenta e cantoras de rádio – eu não conhecia quase nenhuma delas. Ele me perguntou de onde eu era, e quando eu respondi Maringá ele ficou animadíssimo. Disse que tinha passado pela cidade umas dez vezes (a primeira vez nos anos 1960, algumas outras nos anos 1970), que adorava as avenidas largas, as árvores e era louco por uma mulher – como era mesmo o nome daquela dama que fica todas as noites ali na frente das Lojas Pernambucanas?
                Disse que teve uma paixonite avassaladora por ela e que lhe fizera várias propostas de casamento. A dama recusou todas para continuar no ofício. De repente toca João Gilberto no rádio. Pra machucar meu coração. Então me lembrei da história do Gaioto e quis brincar: Por acaso você não esteve no show dele lá em Maringá, esteve? Sua expressão anuviou-se. Que show? Perguntou-me. O mais famoso que fez por lá, eu respondi, ainda brincando. Então ele me encarou por uns dois minutos, incrédulo. Sua voz parecia sair das profundezas quando quebrou o silêncio: rapaz, eu estive lá sim, mas se quer preservar sua vida, não mexa nunca mais com isso, isso foi há muito tempo e ninguém tem o direito de resgatar esse passado. E não falou mais comigo. Deu papo a uma senhorinha que vinha com o País Nenhum para autografar, pediu a saideira, bebeu-a praticamente toda, já de pé, e partiu.

Bar do Zinho
               Comecei a acreditar que tinha alguma verdade nessa farsa. Fiquei pensativo e meu amigo não entendeu nada do que estava acontecendo. Comecei a beber compulsivamente e quase perdi o ônibus por estar fora de mim. Tinha sido mordido. Agora eu teria que descobrir tudo. Não dormi aquela noite no ônibus e trabalhei mal o dia seguinte. Liguei para o Gaioto que me disse para esquecer isso, que não valia mais a pena. De madrugada eu liguei para o Peres, sabia que ele estava acordado revisando os originais do novo livro. Foi soturno e disse para eu procurar o Irineu de Freitas, pois só ele descobriria a verdade. Fui à delegacia e ninguém o conhecia. Liguei pra Santos para falar com o Demarchi, que não gostou da minha ligação naquele horário e me chamou de poetinha americanizado.
                Saí para beber e encontrei uns malucos que fumavam maconha. Passei um tempo bebendo vinho barato com eles e contando as várias versões dessa história. Acharam-me louco. Fui embora sozinho e ainda obcecado. No feriado, fui para Araraquara, dois dias antes da minha aula. Era uma tentativa desesperada de encontrar alguém próximo ao Ignácio, para tentar arrancar dele alguma informação sobre o show do João Gilberto, mas só esbarrei em histórias sem nexo. Fui parar no Bar do Zinho, onde, dizem, as coisas acontecem por lá. Eu já estava bebendo há mais de vinte e quatro horas com alguns intervalos para cochilos rápidos e vômitos no banheiro. Foi quando eu encontrei um colega da UNESP. Contei-lhe toda a história. Literato que é, aconselhou-me: rapaz, ligue pro Sérgio Sant’Anna, ele deve saber de algo.
         Eureca! Como eu não tinha pensado no Sérgio antes? O cara que tinha escrito O Concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro. Ele deveria saber de algo. Não tinha o telefone dele, mas tinha o contato do André Sant’Anna, que, de passagem por Maringá, passou o telefone pros metidos a escritor da cidade: quando quiserem. Peguei o celular, saí do bar e liguei para ele. Ainda não era meia noite. Atendeu-me com voz de sono. Não fiz muita cerimônia. Apresentei-me e contei toda a história, que ele ouviu em silêncio. Se acreditasse em mim, seria fácil de chegar ao pai dele. Esperou que eu falasse tudo para então vociferar: Você nunca mais me ligue pra falar disso senão eu te processo. Isso começou com aquele seu amigo maluco. Vocês estão mexendo onde não devem. Não vá atrás do meu pai e diga àquele seu amigo “Gaiato” que ele me paga. Desligou deixando um zunido no meu ouvido.

Kubitschek Bar e sua Noirceur
      Voltei para o bar e o Luis me grita: Luigi, caramba, hoje tem show cover aqui no bar, o show é do Jotagê, cara, dizem que ele foi amigo muito próximo do João Gilberto. Mas eu já tinha perdido as esperanças. O cara chegou, começou a tocar e eu em direção ao coma alcóolico, tentando beber o que restava no bar. O Luis tomou a liberdade de falar com o Jotagê no intervalo. Eu já estava pagando a conta para ir embora quando um soco me acertou o olho esquerdo em cheio. Você é o imbecil que tá vindo atrás de coisa antiga? Rapaz, se você não sair daqui logo eu te arranco os olhos fora. Não mexa com o João Gilberto, ouviu? Senão ele acaba com você, disse o Jotagê.
                Contei tudo isso ao Gaioto quando voltei, tomando uma cerveja entre músicas de videokê no Kubitschek. Perguntei o que ele achava, quais eram suas fontes, de onde ele tinha tirado tudo isso.
                Não falarei mais sobre isso, Luigi, vamos parar antes que alguém morra. E pra falar a verdade, já está mais para um Samba de uma nota só.



Fui beber para esquecer toda essa história