18 março, 2016

GOING DOWN





GOING DOWN
 Luigi Ricciardi
Você sabe que não posso beber cerveja
E ouvir Elvis Presley
Fico feliz e triste ao mesmo tempo
Entro nesse turbilhão que eu mesmo crio
Viro a lamparina quando não temos energia
Aquela neblina seca nos invernos sem aquecedor
E me sinto esculpido
Pelas entranhas da terra
Acabo acreditando que sou o futuro prêmio Nobel
Que suspendo a morte
Pelo menos por uns minutos
Creio ser um garoto de Liverpool
No auge do experimentalismo
Musical, literário, drogal
Fico doido pra beijar as dobrinhas
Da tua virilha, das tuas axilas
Oh, Love me tender, Love me sweet
Assim tiro o mundo de dentro de mim
Assim tenho um parto orgásmico
E fodo com os buracos negros
E o espaço sideral
E entro pro lado negro da força
De repente já quero uma benzedrina
Abandono o Elvis e os Beatles
Quero ouvir um jazz bebop
Aquela batida mágica
Tomando vodka barata
Vinho barato pra dar um barato
E já começo a falar de Nietzsche
E de todas as experiências possíveis
Que nossos cérebros podem registrar
E os conectomas que tenho
Me fazem imaginar a vida dando cambalhotas
Nas estradas com a linha puramente branca
Nas cervejas infinitas
No teu cu rosado
Vou sendo içado, erguido,
Excitado, de pau duro para o mundo
De coração aberto para a loucura
A demência é minha mãe agora
E de repente já estou na estratosfera
Da terceira, quarta, quinta dimensão
Com negras americanas
Fazendo coro a Hit the Road, Jack
Com solos de guitarra do Slash
Eu e meus pés descalços ali estão:
Retocando as divisões etéreas das coisas
Redefinindo as ordens e prioridades
Remetendo a tua bunda
Que é o segredo do universo
Entendo que a vida é muito mais vida assim
Do que na sobriedade massacrante
Do que nas merdas que a gente se enrola
Pra dizer que é alguém responsável e direito
O mundo é uma matrix sem volta
E a arte é que me leva pra vida de verdade
Que me livra dessa merda comezinha
E aí minha barba se alonga ao infinito
Aos confins da terra
E se enrola em você, coisa doida,
Pra dizer que gosto de ouvir teu gemido
Em si bemol menor
E a culpa de tudo isso é sua
Porque me engoliu quando não deveria
Porque me abriu os olhos
Chupando meus dedos
Me obrigando a te lamber os pelos
A fumar teus grandes lábios
A esquecer que sou mortal
E que virarei osso e depois pó do pó
Apenas Dust in the Wind
Tire daqui essa cerveja
Antes que eu comece a compor
Canções bregas com acordes fáceis
Dó, Fá e sol maiores
Com no máximo um mi menor
Você é o meu demônio das onze horas
Que possui minha esperança tola
E brinca de papéis
Venha deitar comigo e me dar uns tabefes
Sou um bêbado gordo incorrigível
Leia as minhas mãos
E diga que serei o gênio do século
Entre as tuas coxas brancas
Nas tuas estrias e celulites
Cale-me a boca com um beijo cuspido
E sente no meu cetro
Que quero jorrar pelas sarjetas
De Manhattan
Que quero virar aquela poça suja
Pra entender enfim o que vim fazer aqui
Ou pelo menos pra inventar uma razão
Tire a roupa e entre no lago
Como num clipe do Aerosmith
E me dê carona para Marte
Porque lá o ar é rarefeito
E se eu estiver parando
Você me dá um beijo louco
E pulo fora.
Venha logo
Que essa bebedeira precisa passar
Que logo eu quero dormir.

17 março, 2016

DINAMENE E O MUNDO TRANSVIADO





Hoje, mais de cinco milhões de pessoas vão acordar querendo mudar de emprego. Outras setenta e nove mil vão querer o divórcio. Três milhões quatrocentos e doze mil querem ficar famosas. Algumas centenas de milhares continuarão eternamente sonhando com a sua casa própria. E eu só querendo uma tarde de folga para ir ao piquenique. Olhar aquela calcinha de bolinhas pelo vão da saia colorida. Nós nos beijaríamos no parque e se ela não quisesse me acompanhar até em casa, eu me despediria tranquilo e seguiria meu caminho, voltando pra casa e batendo uma punheta calma, como quem se esquece do mundo.
Mas, Dinamene não deixa mais seus tênis vermelhos sobre os meus encardidos. Dinamene não reza mais um terço todos os dias pra eu chegar bem do trabalho. Dinamene se afogou em si mesma. Dinamene jogou-se na correnteza. Seus olhos não repuxam mais, descansam dessa luta que parecia eterna. Sua vagina invertida voltou ao lugar de origem. Seus dentes do juízo não gritam como antes.  Dinamene cozinhava muito bem. Nunca mais comerei seu bife a Camões.
        Quando Dinamene suspirou fugazmente pela última vez, Pedro Alquilar gozava freneticamente com travestis embaixo de um moitel no sul da Espanha. Alquilar é banqueiro e nunca revelou a ninguém seu desejo de vestir meias longas e cor-de-rosa e cantar “I Will Survive” com o vibrador, que tinha encomendado pela loja virtual e que chegou à sua casa com toda da discrição possível, fazendo as vezes de microfone.
        No dia em que eu conheci Dinamene, Yan Massum tirou folga do seu trabalho, algo raro de acontecer. Foi ao cinema comendo um tablete de chocolate. Yan Massum gostava de chocolate. Trabalhava doze horas por dia numa indústria de bicicletas no Japão. Morreu aos 29 anos, assassinado pelo marido da vizinha, com quem ele tinha um caso há cinco meses. Ela tinha sido sua única mulher. Antes dela, Massum era virgem.
Quando a mãe de Dinamene perdeu a virgindade, e, consequentemente, engravidou dela, um italiano se escondia por entre arvoredos no sul da bota. Nunca voltaria a ver a sua terra. Giuseppe Firenzio foi pra América do Sul. Nunca gostou de espaguetes apesar da origem. Fugiu da guerra por ajuda de um primo. Trabalhou três anos na Argentina para uma montadora francesa. Morreu atropelado na Avenida Nove de Julho em 1952.
Quando eu despi Dinamene pela primeira vez, José Oliveira era internado no Rio de Janeiro.  Brasileiro e filho de portugueses, sempre gostou de ler as histórias sobre Vasco da Gama. Adotou o time no Brasil. Morreu de infarto, quando o time caiu pra segunda divisão, aos oitenta e dois anos de idade.
Naquele tempo em que eu vagabundeava nas coxas de Dinamene, Anna Kolonovic tinha seu sexto aborto espontâneo. Casou com um viúvo que tinha seis filhos de outro casamento. Aceitou-os como se fossem seus. Anna Kolonovic trabalhou assiduamente para a União Soviética durante a segunda guerra mundial fabricando bombas. Passou o resto da vida cuidando dos filhos, netos e bisnetos. Morreu aos cento e um anos faz algumas horas.
        Essa gente tinha um céu interno, essa gente tinha o peito farto. Dinamene também tinha. Era mortal e eu não percebera. Pensei que ela fosse personagem minha e que eu pudesse lhe dar vida quando eu quisesse. Dinamene nunca foi criação minha, ela existiu. Escorreu entre os meus dedos em um dia chuvoso. É que eu sempre pensei em Dinamene, antes mesmo de a gente existir.
        Quando Napoleão assumiu o poder, eu já queria Dinamene. Quando Colombo descobriu a América, eu já conhecia Dinamene na minha mente. Quando Platão inventou o mito da caverna, eu já conseguia olhar pra fora da minha caverna e ver Dinamene no portão. Quando Pedro parou de pescar para seguir Jesus, eu já tinha ciência da futura existência de Dinamene.
        Hoje eu acordei com vontade de Dinamene, de lhe dedicar um poema pra apaziguar a culpa do meu peito. Faço mea culpa por deixar Dinamene se afogar em sua loucura. Não lhe prestei devida atenção, quis salvar sempre os textos que escrevia. O barco foi virando, e Dinamene foi embora muito cedo.
        Eu me lembro muito bem daquela pinta meio Marylin Monroe. Daquelas coxas envoltas num lençol branco. Eu pinto com os dedos da memória aquela tinta grossa, os excessos de contornos amarelos e tintas verdes, vermelhas, pretas à la Van Gogh da caricata existência de Dinamene.
        Quando eu falo dela, o tempo se desconecta, não tem cronologia que resista à memória de Dinamene. O mundo é meio às avessas sem a presença dela. Ela era a ordem e a desordem, a tranqüilidade e o caos. Dinamene era o equilíbrio do mundo. Agora o mundo é transviado. Se o mundo soubesse que uma Dinamene já passou por aqui talvez vivêssemos sem guerra. Dinamene é minha pieguice. É meu carma. Dinamene me sepulta todos os dias.
        E hoje as pessoas vão vivendo como se Dinamene nunca tivesse existido. Cinco milhões de homens vão entrar em casa sem olhar pra esposa. Três mil quinhentas e noventa mulheres vão trair seus maridos. Oito milhões novecentos e quinze mil aceitarão suborno. Setecentas e quatorze morrerão de infarto. Quatrocentos milhões perderão o sono por estarem preocupadas com o salário que já está acabando.
        No fundo eles todos sabem, mas não têm coragem de encarar o mundo com a imagem de Dinamene.  Mas Dinamene se afogou em meus lençóis, e eu nunca soube nadar.