15 fevereiro, 2011

TINTAS, QUADROS E ESQUADROS




TINTAS, QUADRO E ESQUADROS
Luigi Ricciardi 

            Nervosamente impelido pelo despertador de som pontiagudo, salta da cama, reles furtivo prazer de quem dedica horas a tudo, menos a si mesmo. Ducha, banho que lava? Banho que molha seu corpo de inconformismos. O abotoar dos botões da camisa já lhe anuncia a jornada que tem à frente, dia de cobranças e conversas nosense na mesa de trabalho. Não via sentido, não tinha sentido. Sentia tudo a engoli-lo, do alto a baixo daquela sala, os telefones clamando urgências, patrões clamando impossibilidades, clientes clamando qualidades.
            Sentido só via nas tintas, misturadas e elaboradas pelos sentidos. As tintas têm espaço mesmo na modernidade, quem partiu foi a tela tradicional, quem chegou foi a tela de computador. Tintas novas em impressões modernas. A folha outrora branca ganha um novo mundo. Ele tinha um mundo ou era branco como a folha? As tintas eram seu sonho colorido, o mundo dos sonhos era azul.
            Recarregava cartuchos, vazios de impressões. As tintas ao menos lhe pintavam as mãos, escorregavam pelos braços e coloriam o uniforme. Branco de pinceladas disformes, vermelho rubro do sangue da peleja, de suportar o dia a dia, vermelho de contas, amarelo de quase-fome de pai desempregado e mãe doente, opaco da rotina semanal.
            Nos intervalos se distraía vendo as cores da tela do computador. Sentava e pintava um quadro distante, sites de um mundo a se descortinar colorido, futuras aquarelas desejando serem pintadas. Desejou pintar a si próprio novamente, encontrou um link e viu o anúncio de um atelier de pintura, número de telefone para inscrição e valor. Teria que dobrar sua carga de trabalho para pagar. Ficou olhando para a tela, olhar perdido no sonho, as cores se misturando cada vez mais, mente construindo quadros de sonhos. Em algum lugar da empresa, o telefone tocava.
            Trabalhou incessantemente, cursou desejosamente sua aventura. Matriculou-se no curso, estudava em casa, na humilde tela que comprara, durante a madrugada. Negro colorido de pinceladas celestes. Aprendeu devagar, combinações bem treinadas, protagonistas cores de exposições vindouras. E o fez! Primeiro a opinião crítica da cidade elogiou, vendeu seus quadros um a um, produziu mais, expôs em várias cidades do país, virou referência da arte contemporânea. Pinceladas da vida!
            Tirou férias, viajou e contemplou pinturas de deus, paisagens de um mundo caótico no conteúdo, mas perfeito na forma. Desejou voltar, alugou uma casa para pintar, tinha uma cama, uma simples cozinha e telas e tinhas por todos os cômodos. Foi pintar, mas notou algo estranho nas cores: ele só possuía um branco-sem-sensações, um amarelo-fome e um vermelho-sangue. Conferiu no estoque, só tinham mesmo lhe entregado essas cores. Tentou ligar para o fornecedor, o telefone estava mudo. Sentou na frente do computador para ler suas mensagens. Uma solicitação de conversa, ele aceitou. Alguém lhe diz:
- Bom dia, ficaram boas as impressões com as novas tintas? Ele não entende e se desculpa dizendo que havia um engano.
- Você não trabalha com cartuchos?
- Não, há muito tempo não trabalho com isso, sou pintor.
- Mas você não é o Lucas? Ele assentiu que sim.
- Pois eu falei com seu patrão hoje mesmo, ele me disse que você estava na mesa do computador ao lado do telefone!
De repente ele olhou para o lado, no início meio embaçado, mas aos poucos foi tomando contornos mais nítidos e então ele viu a mesa de carvalho envelhecido, o computador à sua frente, a página da internet aberta mostrando o curso de pintura, as mãos sujas de tinta. E o escritório estava plenamente ali. Em algum lugar da empresa, o telefone tocava.

14 fevereiro, 2011

LITTÉRATURE QUÉBÉCOISE - LA CHASSE GALÉRIE


LA CHASSE GALÉRIE

A "Chasse Galérie" é uma história presente em várias culturas mas que ficou muito famosa na Literatura Quebequense com a publicação do livro "La Chasse Galérie" por Honoré Beaugrand no início do século XX. É um conjunto de contos cuja narrativa mais famosa é aquela que dá o nome ao livro. Trata-se de uma história de alguns madeireiros que fazem um pacto com o diabo afim de fazer uma canoa voar para que eles pudessem visitar suas mulheres, devendo, entretanto, evitar cometer blasfêmeas durante a travessia e devendo voltar antes das seis horas da manhã do dia seguinte. Caso contrário: eles perderiam suas almas.
Este livro terá sua primeira edição em português neste ano de 2011, em um projeto de tradução liderado pelo professor Ricardo Antônio Soler da UEM, e tendo como colaboradores Luís Cláudio Ferreira Silva, Rogério Francisco da Silva e Marco Antônio Hruschka Teles. Quem quiser conferir este conto e os outros que integram o livro acesse o link abaixo (em francês) no wikisource. Boa leitura!




http://fr.wikisource.org/wiki/La_Chasse-galerie

08 fevereiro, 2011

SEND ME AN ANGEL

Luigi Ricciardi

            A chuva fina cortava seus pensamentos como giletes cegas, torrencial chuva no deserto da estrada. Noite fria, abandono, nevoeiro a dificultar-lhe a direção, ambos os sentidos. Há dias dor de cabeça a lhe consumir a concentração. Sentia incômodos corpóreos sem saber exatamente de onde lhe vinham exatamente.
            Seguia, sem conhecer estrada, sem conhecer caminho, mapa desconhecido de uma mente em transe. Acelerava por curvas, desejando mudanças de trajetórias. Vivia? Vivera até ali? De fato, imagens construídas de algo distante do real, espaço simbolicamente cheio, realmente vazio. Apenas transposição de desejos, seu mundo foi criado pela insegurança.
            De repente, como se um novo dia recomeçasse, pequenos raios vindos do céu começaram a tocar o vidro do carro, esperança que sempre brota em noites de tempestade. E no clichezismo dessa frase, seu peito foi ficando vagaroso, menos pesado pelas fissuras vida, mornosamente esperançoso em algo novo a começar.
            Os raios ficando mais fortes, clarão outrora amigo agora afetando-lhe a visão. Força de um sol a parecer raivoso de sua existência. E em alguns segundos já não vê palmo frente ao rosto. Derrapagem solitária? Astro rei espectador do encontro de um carro às arvores.

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            Acordando de um pesadelo infindo, vê paredes brancas e um crucifixo, ambiente espectral de quase morte. Vasos de flores e uma cadeira vazia. Forçando a memória, o pesadelo lhe regressa à mente, o som da batida. Tenta se lembrar do antes; nada, como se jamais vivera. Aparelhos ao redor, monitorando batimentos, bips a encher a sala no seu deserto de madrugada adentro. Barulhos intensificados, as cores do aparelho mudando, verde a vermelho, funções vitais em perigo e ele sentado a observar seus últimos segundos. Quando a máquina identificou a falência, seu grito preenchia todos os espaços do hospital.

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            Transpirando medos às sete da manhã, atrasado uma vez mais. Correndo ao banho matinal, culpava o pesadelo que sempre lhe visitava à mesma hora há meses. Rotina estrutural há perseguir-lhe às pernas. Corria, mas pra onde corria? Sentia um desejo por algo que não conhecia, pela primeira vez desejava sem rumo. Desejo era conquista, sempre fora. Quis casar, casou, quis ter um filho, teve-o, comprou casa, automóvel, viajou. No momento do alcance o desprendimento acontecia, objeto já sem valor. As vezes lhe parecia que a corrida é que importava. Agora novamente o desejo sem saber para quem destinar. No almoço o estômago, à tarde o rim, à noite o coração, sentia-os trespassados, espada do tempo, assassina dos sonhos. Dormiu por remédios.

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            - Oi, sou eu. Você consegue me ouvir? Estou aqui sentada, venho novamente quando for preciso!

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            Sirenes a cortar-lhe os sentidos. Respire, respire. Não vá, mas ele queria ir. Desejava ir. Aquele brilho intenso a tocar o vidro, queria aquele brilho intenso.

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            Novo pesadelo? Satisfação em suspiro, não quis entender. Há tempos não se via livre daquele pesadelo, agora ao menos um diferente. Sentia que algo novo estava prestes a acontecer e saiu pro trabalho. Felicidade apaga a memória ou a ofusca? Saiu sem café nem banho, com meias trocadas. Sua mente agora a molestar via-láctea, mas o esquecimento veio fraco como o vento que antecede o tornado. Foi sacar dinheiro para comer e deixou na boca do caixa eletrônico, tirou a blusa quando entrou no café e deixou-a repousando sobre a mesa quando saiu. Deixou uma pasta na mesa do trabalho, quando voltou ela já não estava. No banho em casa começou a se enxugar e a toalha não estava em suas mãos. Inconsciente, universo sem fronteiras, mas que dialoga. Sonho ou neurose? Falta ou presença? Verdade ou criação? Tudo se perdia, Eolo de fugazes furtos a anunciar perdas inestimáveis.
            Saiu para comer. O motorista não parou o ônibus quando quis, nem reagiu aos seus gritos. Foi ao restaurante, o garçom não lhe atendeu. Perguntou as horas a um casal, que de apaixonado nem notou sua presença. Não entendia, ainda não entendia, mas era o momento da revelação. Sentiu um líquido quente na sua camisa, olhou para baixo, estava todo vermelho.

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            Respirando fundo, mesma sala branca de quase morte. Crucifixo brilhante quase a cegar-lhe. Silêncio que tão profundo lhe permitia ouvir o mexer de suas próprias entranhas. Náusea, náusea. Escutou passos no corredor. Os sons se aproximando, lentamente como numa marcha. Cada toque no chão doía-lhe o peito, calafrios a enrijecer-lhe a respiração. Contraditória humanidade: curioso, desejou saber quem era ou o que era.
            Aproximando, a sala foi tomada por um negrume fatal. As rosas murcharam ao lado da mesa, o aparelho ao qual estava ligado desligou-se, o crucifixo se apagou, o vento que entrava pela janela cessou. E o ranger da porta se abrindo trancou-lhe o respirar.
            E então, alva de seu mistério, ela entrou. Figura milenar, ultra-secular, na beleza de sua mocidade. Sentiu, apesar da aparência, o conhecimento de todos os séculos naqueles olhos cor de terra que lhe fitavam severa e amorosamente. Andava ou flutuava? Veio em sua direção como se marchasse ao som de uma corneta.
            Ao lado da cama, estendeu o braço e tocou-lhe o rosto, seda dos confins do universo de um passado mais velho que o próprio passado. Ela tocou-lhe de volta o rosto, mas seus dedos eram ásperos, como se não houvesse neles vida.
            - Quem é você?
            - Você sabe quem eu sou. Sou o clarão daquela estrada, sou a voz a sussurar-lhe, sou aquela que você sempre desejou, aquela que te completa, que leva embora as angústias, mas que termina com seus dias. Sou mais velha que o mundo, que a vida, sou mais velha que Deus.
            - Por que você é tão bela?
            - Sou tua criação, não tenho matéria, venho da forma que me você me imagina, da forma que você me deseja, da forma que você quer me ver. Então sou assim!
            Ele fez um movimento para fazer ainda uma pergunta, mas ela interrompeu-lhe colocando seus dedos em sua boca. Sabia o que ele perguntaria, e sabia dar-lhe a resposta: sim, já é tempo. E tocaram os lábios com um beijo. A luz renasceu no quarto, mas não nos objetos, e sim dentro dele, ficou cada vez mais forte até ofuscar toda a sala, e quando se apagou, ele estava de pé, olhando o seu corpo que jazia sobre a cama.
            Ela pegou-lhe pela mão e o conduziu à porta, ela se abriu, com uma escuridão do lado externo. Lá entraram, e então a porta se fechou.