TINTAS, QUADRO E ESQUADROS
Nervosamente impelido pelo despertador de som pontiagudo, salta da cama, reles furtivo prazer de quem dedica horas a tudo, menos a si mesmo. Ducha, banho que lava? Banho que molha seu corpo de inconformismos. O abotoar dos botões da camisa já lhe anuncia a jornada que tem à frente, dia de cobranças e conversas nosense na mesa de trabalho. Não via sentido, não tinha sentido. Sentia tudo a engoli-lo, do alto a baixo daquela sala, os telefones clamando urgências, patrões clamando impossibilidades, clientes clamando qualidades.
Sentido só via nas tintas, misturadas e elaboradas pelos sentidos. As tintas têm espaço mesmo na modernidade, quem partiu foi a tela tradicional, quem chegou foi a tela de computador. Tintas novas em impressões modernas. A folha outrora branca ganha um novo mundo. Ele tinha um mundo ou era branco como a folha? As tintas eram seu sonho colorido, o mundo dos sonhos era azul.
Recarregava cartuchos, vazios de impressões. As tintas ao menos lhe pintavam as mãos, escorregavam pelos braços e coloriam o uniforme. Branco de pinceladas disformes, vermelho rubro do sangue da peleja, de suportar o dia a dia, vermelho de contas, amarelo de quase-fome de pai desempregado e mãe doente, opaco da rotina semanal.
Nos intervalos se distraía vendo as cores da tela do computador. Sentava e pintava um quadro distante, sites de um mundo a se descortinar colorido, futuras aquarelas desejando serem pintadas. Desejou pintar a si próprio novamente, encontrou um link e viu o anúncio de um atelier de pintura, número de telefone para inscrição e valor. Teria que dobrar sua carga de trabalho para pagar. Ficou olhando para a tela, olhar perdido no sonho, as cores se misturando cada vez mais, mente construindo quadros de sonhos. Em algum lugar da empresa, o telefone tocava.
Trabalhou incessantemente, cursou desejosamente sua aventura. Matriculou-se no curso, estudava em casa, na humilde tela que comprara, durante a madrugada. Negro colorido de pinceladas celestes. Aprendeu devagar, combinações bem treinadas, protagonistas cores de exposições vindouras. E o fez! Primeiro a opinião crítica da cidade elogiou, vendeu seus quadros um a um, produziu mais, expôs em várias cidades do país, virou referência da arte contemporânea. Pinceladas da vida!
Tirou férias, viajou e contemplou pinturas de deus, paisagens de um mundo caótico no conteúdo, mas perfeito na forma. Desejou voltar, alugou uma casa para pintar, tinha uma cama, uma simples cozinha e telas e tinhas por todos os cômodos. Foi pintar, mas notou algo estranho nas cores: ele só possuía um branco-sem-sensações, um amarelo-fome e um vermelho-sangue. Conferiu no estoque, só tinham mesmo lhe entregado essas cores. Tentou ligar para o fornecedor, o telefone estava mudo. Sentou na frente do computador para ler suas mensagens. Uma solicitação de conversa, ele aceitou. Alguém lhe diz:
- Bom dia, ficaram boas as impressões com as novas tintas? Ele não entende e se desculpa dizendo que havia um engano.
- Você não trabalha com cartuchos?
- Não, há muito tempo não trabalho com isso, sou pintor.
- Mas você não é o Lucas? Ele assentiu que sim.
- Pois eu falei com seu patrão hoje mesmo, ele me disse que você estava na mesa do computador ao lado do telefone!
De repente ele olhou para o lado, no início meio embaçado, mas aos poucos foi tomando contornos mais nítidos e então ele viu a mesa de carvalho envelhecido, o computador à sua frente, a página da internet aberta mostrando o curso de pintura, as mãos sujas de tinta. E o escritório estava plenamente ali. Em algum lugar da empresa, o telefone tocava.