Esse é um dos que eu mais gosto
Animal City
Luigi Ricciardi
O despertar nesta ímpar cidade é
como todos os outros, lento e sofrível, contudo, um pouco mais nessa tímida
manhã por conta do aconchegante clima propiciado pela noite de intenso frio que
abraçou os prédios e as tocas. O inverno veio intensificar ainda mais o frio
das consciências, só amenizado pelo tenro e acanhado sol que entra pela janela
e toca os olhos de seus moradores. À medida que o astro do céu vai vencendo as
primeiras nuvens, podem ser ouvidos, primeiro timidamente, mas depois com mais
ênfase, cacarejos, mugidos, coachos, pios, grunhidos, sibilos, relinchos,
blateros, berros e bramidos.
A perspectiva de um novo dia
revigora os espíritos animalescos da cidade-floresta. Cada um sai de sua
casa-toca direto para seus afazeres, esperando que o novo dia lhes traga algo
benfazejo. Porém, os habitantes dessa cidade têm hábitos um tanto quanto
estranhos. As toupeiras não vivem debaixo da terra. Andam, quase cegas pela luz
solar, em meio às ruas buscando alguma terra para cheirar. Enxergam obnubilado,
e sorriem, com seus dentes estranhos, a todos que passam. Entre si, dão graças
aos céus pela vida, pelo emprego e pelo pouco alimento que tinham. Mesmo, após
descobertas as falcatruas, votavam sempre no leão para prefeito da cidade; e,
suspiravam quando viam passar qualquer gato pela rua, amavam este bicho,
criam-nos seres belos e perfeitos. Mal sabiam as pobres toupeiras que, na
verdade, o ser a quem elas dirigiam seus suspiros era o jumento, líder do
partido político que sempre apoiava o leão nas eleições. A vida seguia, as
toupeiras sempre a confundirem jumentos com gatos.
As galinhas já não dormem mais
consigo mesmas, agora trocaram a noite pelo dia, não andam mais a ciscar pela
manhã. Na era moderna são noctívagas, produzem-se todas as noites, usam
maquiagem, batom e arrumam bem as penas; compram botas e roupas da melhor
qualidade, e vão ciscar atrás de alguma valiosa espiga de milho pelas ruas da
cidade. Seus amigos e amantes mais fiéis são as hienas, sempre divertidas, que
lhe dão sempre um presente e pagam sua conta. As hienas agora são ricas, rir é
um ofício que dá dinheiro. Agora usam até chapéus e tem carros do ano e levam
as galinhas para passear, além de terem lhes ensinado a rir.
Malgrado as diferenças modernas dos
comportamentos animalescos, há coisas que continuam como outrora. O leitor já
deve tê-lo notado, visto que as hienas continuam a rir. A única diferença é do
objeto que provoca o riso. Agora riem da tv, riem das músicas que escutam e das
suas próprias risadas; além de rirem muito quando um camelo passa pela rua
cansado pela fadiga do dia de trabalho. Em se tratando de camelo, vê-se que sua
vida é semelhantíssima àquela que levava no deserto, um pouco menos quente,
claro está, mas seu ônus continua a ser pesado. Trabalha sol a sol na
construção civil ou nas pequenas plantações, é zelador ou faxineiro. Por esses
árduos ofícios recebe pouco e, consequentemente, come mal, diverte-se pouco e é
roubado na volta para casa. O que lhe salva é a grande amizade dos cavalos,
seres que partilham da mesma dura e difícil existência camelística.
O pato, aqui, vive menos
corajosamente do que nas outras cidades, onde, não importa a temperatura,
vencem o medo e vão, tão logo acordam, molhar suas penas na lagoa. Nesta cidade
o pato não tem vontade, e, se as tem, prefere, por medo, não levá-las a cabo. É
tratado desdenhosamente no trabalho, deixa os filhos gastarem seu dinheiro e
continua votando no leão, mesmo sabendo de sua corruptibilidade.
Os touros se tornaram meio hienas.
Aprenderam a rir. Mas deles riem muito também. O touro perdeu essência e
robustez, está desatento. Nem mesmo percebe seus chifres baterem no alto da
porta ao sair de casa, e o risinho disfarçado de sua esposa, a bela vaca. Pois
é, há semelhanças, mas há, na maior parte dos casos, uma grande mudança.
Os porcos, por exemplo, agora são
membros da justiça. Continuam enormes, mas agora cuidam dos processos judiciais
além de criarem as leis da cidade. Comem o tempo todo, estão cada vez mais
enormes, adoram fast food. Com um bom dinheiro compraram a companhia das
galinhas. Vão pra cama com elas todas as noites por uma promessa de boa vida.
São sedutores apesar de suas grandes barrigas. Nisso, os porcos se tornaram um
pouco morcegos, sugam o que puder dos alheios. Mas se transformaram também um
pouco em gambás, fedem constantemente.
Quem faz companhia aos porcos nas
câmaras e júris são as cobras. Em um ambiente movimentado são inofensivas, mas
de costas e à meia luz é quase impossível não ser picado por elas.
Nessa confusão de animais modernos
um dos poucos que não se adaptou foi o cachorro. Fato é que deixou de ser
domiciliado. Não há interesse em tê-lo por perto, os outros animais se sentem
muito perto da antiga essência e por isso o repelem. Os cães habitam as ruas
frias da cidade, comem os restos, não se adaptaram ao meio. Vivem ao acaso, mas
são mais felizes assim. Comportamento corroborado pelos gatos, que compartilham
os duros caminhos trilhados pelos cães. No céu, os pássaros estão livres para
voar, longe da agitação. Fazem o que os outros, peremptoriamente, estão
proibidos, ou, pelo menos, nunca tentaram. Um dos grandes avanços dessas três
raças é que aprenderam a ler. Estudam, escrevem, são sensíveis. Gostam de andar
pelo mundo a conhecerem sentimentos novos, searas infindas que a vida lhes
oferece. São excluídos, todos eles, mas assim preferem ser, sua essencialidade
é integra.
O dia já passou, todos continuaram a fazer as coisas que mais lhe
apetecem e a roda da vida continua a girar. Um cão, agora, neste fim de tarde, está
sentado à beira de um muro, descansando de sua única refeição diária. Perto
dele, um gato está deitado ao lado de um pássaro. Nenhum deles está em perigo
ou é ameaça para os outros; convivem em paz. Os três estão com os olhares focados em meio
ao agitar do fim de tarde. Vêem a vaca sorrindo ao sair sorrateiramente de uma
porta. Vêem o pato, amigo do touro, encontrar a vaca tão logo ela fecha a porta
do lugar onde estivera. Ela ri e disfarça, ele sabe, mas não contará ao amigo.
Os três ainda escutam, quase concomitantemente, ao longe, o riso aterrorizante
das hienas e as risadinhas sem tempero das galinhas. O camelo passa com um
olhar triste e o cavalo com uma expressão fatigada. O touro está prestes a sair
do trabalho, e ao passar na porta, ficará preso por segundos. As toupeiras
estão suspirando, do outro lado da rua, ao verem um jumento passar. Ele para e
prega um cartaz de apoio à reeleição do prefeito. Uma galinha passa correndo,
um grande porco vem atrás dela fazendo gestos sexuais. Atrás dele, uma cobra
vem picando o seu calcanhar. Todos eles estão voltando para as suas tocas,
cavernas, enquanto os três, gato, cão e pássaro, ficarão à luz da lua.
Vendo tal cena, os três se põem a refletir sobre o que vêem todos os fins
de tarde. Pensam se, se fosse necessário, trocariam a vida que levam por um
trabalho normal e um lar quente. Não precisam pensar muito. Apesar do frio da
existência que os assola, preferem isso à sociedade. Ou então, que voltem à
antiga e verdadeira floresta, ou que a terra os engula.