Sou...
Luigi Ricciardi
Sou a noite no apagar das
luzes. Sou a lamparina que se apaga e não retorna a se acender. E a luz muda
dos postes que ilumina as ruas também sou eu.
Sou a chuva que penetra
cruelmente nos ossos dos animais sem dono, sou também as entranhas animalescas
e o paletó maltrapilho do mendigo encharcado pela nuvem eterna de descasos.
Sou
o perdido que anda no escuro da noite a ouvir sussurros infernais do vento. Sou
esse vento.
Sou
a lágrima da vela que queima, sou o canto escuro do quarto, sou aqueles que não
têm vela. Sou o rato observado por mim mesmo na esquina da rua mal iluminada. O
observar já me torna rato.
Sou
o mendigo açoitado pela polícia porque teve fome, sou o bandido que mata e vê a
cena do mendigo espancado. Sou a polícia abusiva.
Também
posso ser a menina que sonha em encontrar o amado, sou o amado a esperar na
estação. Posso ser o trem que a conduz ao seu destino, mas sou o trilho
descarrilado na montanha.
Talvez
eu seja o riquinho que dirige embriagado. Sou o copo e a bebida que o conduzem,
ou mesmo o dinheiro que compra o mundo. Talvez eu seja o freio não usado a
tempo, ou a menina morta na calçada.
Sou
o sangue a misturar-se no oriente, a bala que perfura a testa, a espada que
transpassa. Sou o afago que toca os cabelos, sou o sabor do vinho de festa, sou
o beijo que se auto-acaricia.
Talvez
a máquina do futuro, o motor enfurecido, os cálculos algoritmos. Ou cajado do
profeta, a água do dilúvio, o anjo promissor.
Sou
a fotografia apagada, o pássaro preso na gaiola, a flor que não desabrocha, o
gelo que não derrete, a chamada não atendida, o filme que não termina, a
estrada bifurcada, o pulo dos chineses, o vento, a tempestade, um tornado. A
sujeira no canto do belo quadro, as letras de fim de filme, os pontos nos finais
das frases, o grão de areia do Saara, uma folha na Amazônia, um orvalho
desprendido e precipitado no Nilo.
Acabo
por ser tudo, e por fim vejo que não sou nada do que fui. Nada sou, e nada
virei a ser, pois fui tudo isso. E já que o sou, não preciso do nada. Mas o
nada me atinge.
Creio que eu canto para não
pensar em nada, não penso em nada para cantar. Penso em tudo para escrever,
escrevo sem pensar. Sinto o que não sinto, será que não sinto? O que sinto?
Termino por ser sempre uma
metáfora, por vezes paradoxo. Sou o contentamento e a melancolia a viverem
vizinhas. Neste interlúdio nem vejo as nuanças, quando percebo já estou. Ao
nível zero posso topar com uma pedra e descer aos abismos. A queda pode ser
ainda maior se a pedra estiver no alto, dependendo do cume que escalo. A subida
se torna maior, então. Sou essa subida.
E quanto à metáfora, sou-a de
mim mesmo. Sou-a no tropeçar das pernas, no troféu do capitão, no frio da
geleira, no chocar das águas nas rochas da praia. Sou o rádio ligado e a moça a
sonhar com o futuro. A voz que não fala nunca; os olhos, que vendo, não vêem.
Sou o querer que não quer, o mudar sem sair, o não querer mudanças.
Sou
o desejo espantado, o desejo realizado, o desejado não desejado. Desejo o corpo
vizinho, tocar o corpo do outro. Desejo tocar a mim mesmo, desejo não desejar.
Quero ser a libido, o desejo recolhido, a explosão do deleite prazeroso. Desejo
ser a altura do prédio, a vontade do pulo, o medo de altura. Quero ser o correr
feliz, o descobrir das coisas, a fonte da sabedoria. Quero ser o relógio
eterno, o momento amiúde, o vão no tempo. Quero ver o futuro, ser o futuro,
viver o passado. Mudar as peças de lugar, inverter as pessoas, trocar os
casais, apagar os heróis. Quero ser crucificado, quero viver eternamente. Quero
ser a vida, quero criar a vida, quero ser deus.
Não.
Quero ser o grão caído, não me importar com guerras, ser somente o camponês
sorridente. Viver nas colinas, viver sem janelas, viver com um tapa-olho. Quero
ser o isolamento, quero ser o não ferir, quero ser o que não sei. Pois tenho
medo do infinito e temo vir a sê-lo.
Tenho medo da dor, e por
temê-la, ela vem antes de vir. Tenho medo do escuro, tenho medo da morte, tenho
medo do não existir. E por temer minhas palavras não quero mais escrever, quero
ser o não escrito. Sou a eternidade do pensar em ser, sou o eterno não querer.
A partir de agora sou a caneta com que se escreve, sou a página virada, o livro
que nunca fecha, sou este livro fechado!
2 comentários:
"Também posso ser a menina que sonha em encontrar o amado, sou o amado a esperar na estação. Posso ser o trem que a conduz ao seu destino, mas sou o trilho descarrilado na montanha."
Sem saída, sinal fechado. rs
Metáforas! Quando se é metáfora, tudo o que somos torna-se aquilo que dizemos, e tudo o que dizemos volta-se para nós sob outras formas de metáforas, novas [des]construções de sentido. Quando se é metáfora, a licença poética é "mau educada" - é intrometida, está em tudo o que vemos, pois tudo a ti, torna-se subjetivo.
Nas (des) construções novas (re) significações, e a língua se (re) inventa!
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