30 maio, 2010

TRIBUTO PARA CARONTE




Tributo para Caronte
Fora entorpecente. Tarde chuvosamente fria. Procuraram-se mutuamente em domingo, dia de coisa alguma. Momento de fraterno descanso após espinhos semanais. Vive agora leniência leve após os febris momentos. Ele sente os seios dela pressionando seu tórax. Excita-se um pouco, mas se deixa contemplar, a divinizar aquela que já dorme sobre seu peito. Sua Afrodite eventual.
Não há muito, o frenesi preenchia todos os espaços do quarto. Pontas de dedos tocando aljôfares. Suspiros brandos. Sonata aumentando compasso. E o beijo na rosa. Picos de montanhas. Dentes e gemidos. Porta-aviões. Trançar de pernas, serpentes da floresta. Trêmulos espasmos. Felinos em jaulas campestres. Doce escorrer de mel e suor. Venceram-se carnes, espíritos brandos. Beberam dionisiacamente. O leve sono daqueles que conquistam o mundo nas paredes de um quarto.
Cronos caminhava rápido, pensou. Lá se vai a vida. O ritmo fora bom, mas não o mesmo de juventude plena. Memória voando folhas, mas verdes, num princípio outonal. Vê a pele diferente, ainda tem as marcas das travessuras infantis, mas já cronificadas. Tudo em si mudara, vagarosamente e ágil. Não se percebeu já circundado de papéis e afazeres. Passou a usar óculos. Seus vencimentos lhe deram um veículo e um teto. Seus pais já partiram. Envelhecia ou intrínseca falácia? Empreendia tal e como nos seus raciocínios, mas deixou a afasia mental vencer-lhe, fechando-lhe as pálpebras.
Despertou estranhamente, auferiram-lhe o sono. Sentia o corpo mais pesado sobre si, e quando olhou já estava sendo observado. Do seu sono ela havia levantado com olhar retumbante. Seus olhos eram de pedra, medusa invertida. Uma austera voz da de sua boca saiu a provocar-lhe calafrios infernais: “Como essa comida, essa vida de segundo em segundo. Essa vida, ferida que não fecha e que devora. Devoro comos, em comedidas encomendas. Em coma, e na cama. É assim a comédia de viver. Assim que sou, e assim sempre serei”.
Dizendo isso riu como só o maior dos demônios poderia rir. Abraçou-o e envolveu-o, numa posse que se logo concretizaria. A se debater, sentiu frios tentáculos, gosmentos e gelados como frio da não-vida. Julgou que seria devorado. Aqueles olhos abolidos de amor, a aspereza daquela língua a convidar-lhe ao beijo. Entretanto em segundos ele a viu esfacela-se em poeira e o eco sumindo pela janela.
Acordou gritando. Sendo visto por olhos que diziam “estou aqui”. Ela já não era a górgona de seu desespero. Era novamente sua Afrodite sazonal. Abraçou-a como um Hefesto menino. Acalentou-lhe o espírito, pensamentos secos viajaram-se pesadelos. Mas já se perderam. Agora a paz. Tendo sido beijado à face, moderou os medos, sentiu-se de novo vivo. Pediu um abraço e ganhando, quis um café. Ela foi lhe atender. Apenas um sonho, pensou, apenas. Levantou-se para se lavar, quando o medo voltou a lhe dominar. Relembrou a voz facúndia a desejar-lhe. Calafriou-se de horrores. Nu, correu e deixou o quarto. Viam-se, ao lado da cama, sobre um criado mudo, duas moedas de prata com um desenho de um barco em cada uma delas.

Um comentário:

Alberto disse...

Meus parabéns pelo conto. Não esperava o fim realmente. A moeda do caronte é o símbolo máximo da morte. Diálogo exuberante com a mitologia.